Fred Melo Paiva
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O time do amor

"Naquele mar vermelho, o menino olhava assustado e entorpecido o incrível ritual. Esse menino nunca mais vai esquecer aquela quarta-feira"

postado em 01/03/2014 08:04

Fred Melo Paiva /Estado de Minas

Passei a última semana em Belo Horizonte envolvido com um dos mais interessantes episódios que já gravei para O Infiltrado, série que apresento no History Channel. Para investigar o mundo dos fanáticos por futebol, conferi a mim mesmo uma missão capaz de me dar um ponto de vista diferente sobre o assunto, embora ela trafegasse entre o surreal e o impraticável: curar-me do meu próprio fanatismo.

Quando eu tinha 3 anos, meu pai não gostava de futebol, em razão do uso político que se fazia do esporte nos anos pesados da ditadura. Contei essa história num livrinho infantil, já esgotado, chamado O dia em que me tornei atleticano. Para demover o filho das tentações do ludopédio, ele atacava o Reinaldo, acusando-o, na maior cara de pau, de ser perna desta mesma natureza. A família da minha mãe, repleta de atleticanos, tratou de me levar para o bom caminho.

Acontece, porém, que o tio Fábio, meu padrinho, era ovelha celeste no meio da massa. Entre os 14 irmãos da minha mãe e meus 33 primos só de primeiro grau (juro), teve a pachorra de me presentear com uma camisa do Cruzeiro, num domingo de futebol, na casa da minha avó. Pois meteram fogo nela, e o incêndio do meu presente tornou-se a imagem mais antiga que tenho na memória – a faísca que acendeu minha paixão pelo Atlético.

A equipe que faz O Infiltrado não liga pra futebol. São cariocas simpatizantes e um inglês que, tendo tido contato com Minas em tempos idos, dizia-se cruzeirense (prática que abandonou tão logo percebeu o tamanho do meu fundamentalismo). Não demorou para que entendessem o papel que têm o sofrimento e a redenção na torcida do Galo e como isso foi capaz de transformar uma torcida de futebol numa experiência mística. Ainda assim, por mais que tentassem nos compreender, eu via nos seus olhos a velha frase que tantas vezes repeti: “Não tem explicação”.

No domingo passado, levei a turma ao Bar do Salomão para ver Atlético e América. Chamei o meu pai e o Reinaldo. O que era pra ser uma tarde de futebol sem maior importância transformou-se em outra coisa diante da adversidade daqueles 2 a 0. De repente, na tempestade, estávamos unidos na torcida contra o vento.

Ninguém no mundo pode cantar isto com mais propriedade: “O Galo é o time da virada, o Galo é o time do amor”. Nessa batida ganhamos o jogo, quando ele já havia se tornado o fato mais importante das nossas vidas. Fora o quadrinho que eu vou mandar fazer com a histórica fotografia: meu pai e o Rei, os dois com o braço pra cima e o punho cerrado, vitoriosos na luta contra a ditadura – que combatiam com fervor, cada um ao seu modo.

Na quarta-feira, o cenário era o inferno alvinegro, com suas ruas de fogo. Poucos espetáculos, pra mim, são mais arrebatadores. Quando o ônibus do Galo se aproximava, como a corda no Círio de Nazaré, eu vi um pai com uma criança muito pequena nos ombros. Ele acendeu um sinalizador e o entregou ao filho, antes de acender o seu. Era algo imprudente e maravilhoso.

Naquele mar vermelho, o menino olhava assustado e entorpecido o incrível ritual. Esse menino nunca mais vai esquecer aquela quarta-feira. Essa imagem será sua mais antiga lembrança. A nostalgia daquilo vai virar amor antes que ele entenda de fato o que é o amor. Some-se a isso a agonia do jogo, o gol, a virada outra vez. E esse menino vai ser Galo até morrer.

Eis a explicação.

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