Fred Melo Paiva
None

Eu tinha certeza

'Enquanto eu roía as unhas do lado de cá, impedido por superstição de ver o jogo, imaginava o papa do outro lado do mundo pelejando com seu radinho de pilha'

postado em 17/05/2014 12:00 / atualizado em 17/05/2014 18:17

Fred Melo Paiva /Estado de Minas

É, minha gente, a maré tá mudando. A certa altura desses últimos meses, me perguntei quem teria sido o desgraçado que fizera o pacto com o diabo pra que a gente ganhasse daquele jeito épico e surreal a Libertadores de 2013. O Kalil? O Cuca? O Willy Gonzer? Seria Victor o santo do pau oco em conluio com Satanás? Cheguei a escrever: que se apresente para o sacrifício o atleticano que espetou o boneco de vodu quando aquele paraguaio desabou de forma sobrenatural. Escrevi, li, reli e apaguei, com medo de atrair encosto ainda mais poderoso.

Agora vemos que não era nada disso. Bastava um sinal – uma vitória sobre o Cruzeiro –, e já se deu o realinhamento automático dos astros. Naquele dia pude ouvir uma voz: “Keep calm and Marion”. Depois da virada no Horto – onde o time do Barro Preto nas calças não vence o Galo desde 1965 –, o atleticano ficou leve, seu casamento entrou em nova e alvissareira fase e só uma tragédia tira seu título de funcionário do mês.

É boa hora para fazermos operações espirituais em nosso Departamento Médico. Igualmente oportuno é sentar à mesa com a presidente Dilma e explicar a ela como essa nova conjunção astral favorece a liberação do dinheiro do Bernard – e o principal: lembrá-la dos 8 milhões de atleticanos que votam. Vai, Dilma, para de ser bolada e libera logo a nossa grana! A gente aplica tudo no Minha casa, minha vida – ou seja, bota tudo na construção do nosso estádio lá no Califórnia. Lula fez o Itaquerão, faça agora como os Dead Kennedys: Califórnia über alles!

Todas essas novas expectativas se descortinaram depois daquele 2 a 1. E não bastasse a vitória redentora, veio também a derrota épica. Esta começou pra mim no dia anterior, quando encontrei Reinaldo, o Rei, e seu filho, Philipe, para uma pizza em São Paulo. Como tudo no Brasil, exceto o Mensalão do PT, nossa pizza terminou em pizza – e o que ingerimos de fato foram tulipas e mais tulipas de chope.

Acordei com duas certezas: a ressaca implacável e a vitória do San Lorenzo. Eu não apenas acreditava na derrota do Cruzeiro – eu tinha certeza! Primeiramente como punk e anarquista e posteriormente como ateu e comunista, jamais imaginei possível uma aliança com o Vaticano. Mas enquanto eu roía as unhas do lado de cá, impedido por superstição de ver o jogo, imaginava o papa do outro lado do mundo pelejando com seu radinho de pilha.

Aquela imagem remetia a mim mesmo, nos primeiros anos de SP, quando nem mesmo um rádio usado na Segunda Guerra foi capaz de encontrar a Itatiaia. E então eu ouvia jogo do Galo por telefone, consumindo meu salário curto em interurbanos de uma hora e meia toda quarta e todo domingo. Isso foi no tempo que o Cruzeiro ganhou a última Libertadores – não existia internet nem TV a cabo e ainda se podia comprar calças pespontadas na Toulon.

O lance é que o torcedor exilado me comove – e durante 90 minutos eu pensei naquele papa indo e voltando por um corredor escuro, o bombril na ponta da antena de seu radinho. Eu não tava torcendo contra o Cruzeiro – eu apenas torcia por aquele pobre papa, que no fundo gostaria mesmo era de rasgar a batina, abrir a famosa janela sobre a Praça de São Pedro e gritar: “Chuuuuuupa!”.

Foi o que fiz ao ligar finalmente a TV e encontrar Marcelo Moreno chorando o leite derramado. Agora vai!, pensei comigo. Eu tenho certeza!

Tags: atleticomg