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TIRO LIVRE

Mais que um grande jogador

Tão importante quanto o talento mostrado por ele em campo foi a lição de superação fora das quatro linhas

postado em 30/06/2017 12:00 / atualizado em 30/06/2017 13:38

Satiro Sodré / Botafogo

“Não vou alimentar uma morte lenta. Pronto, acabou.” Foi assim, sem querer prolongar sofrimento, sem criar falsas expectativas, batido pelo mais implacável dos adversários que encontrou – as lesões –, que o armador Montillo encerrou sua carreira nos gramados nessa quinta-feira, depois de 15 anos encantando torcedores argentinos, mexicanos, chilenos, brasileiros e chineses. No Brasil, foi com a camisa do Cruzeiro que o armador de fato brilhou. Deixou saudade quando foi embora, no início de 2013, por mais que a saída tenha sido marcada por algumas rusgas, com a torcida se sentindo traída quando o clube celeste anunciou que estava se desfazendo de sua principal estrela a pedido do próprio, que queria respirar novos ares. Mas o tempo costuma pôr cada coisa em seu lugar, e certamente Montillo tem o seu espaço no coração cruzeirense, cicatrizada a ferida causada por aquela mágoa.

Motivos de sobra há para o torcedor celeste dedicar um pedacinho que seja em sua memória ao argentino. Foram 122 jogos com pela equipe e 36 gols, que fizeram dele o terceiro maior artilheiro estrangeiro do Cruzeiro. Inteligente e habilidoso, ainda contribuiu com 36 assistências. Participou diretamente dos gols da Raposa em 60% dos jogos em que atuou, como garçom ou artilheiro.

Essa parceria começou de forma curiosa. Os cruzeirenses, que sonhavam com a chegada do craque Juan Román Riquelme, acordaram com um hermano menos badalado, Walter Damián Montillo. Em 6 de julho de 2010, quando o armador desembarcou em Belo Horizonte, os torcedores mal poderiam imaginar que a emenda sairia tão melhor que o soneto. Em pouco tempo, Montillo, caiu nas graças de todos, tornando-se ídolo. Preencheu uma lacuna fundamental no meio-campo do time, órfão desde a partida de Alex, em 2004.



Tão importante quanto o talento mostrado por ele em campo foi a lição de superação fora das quatro linhas, que sensibilizou a todos que acompanharam a história, independentemente de cor de camisa: a luta pela vida do caçula da família, Santino, portador de síndrome de Down. Lembro que conversei com Montillo sobre esse e outros assuntos em meados de 2011, numa matéria especial para a Revista Hit, que era editada pelos Diários Associados.

Ele falou abertamente sobre tudo, inclusive sobre o complicado primeiro ano de vida do garoto, que passara por cirurgias arriscadas, no estômago e no coração. Impressionou-me a fortaleza emocional do jogador ao lidar com todas as dificuldades decorrentes do delicado estado de saúde do bebê e ainda assim cumprir seu papel profissional no clube. O alicerce, dizia, estava na mulher, Melina, que ele conheceu em sua terra natal, Lanús, e com quem se casara antes dos 20 anos. Era ela quem segurava a barra maior, afirmava Montillo, e dava a ele tranquilidade para jogar bola. Agradeceu também à compreensão do técnico Cuca e da diretoria celeste.

O primogênito, Valentin, então com 3 anos, era um show à parte naquela época. Vestido com uniforme do Cruzeiro, volta e meia estava na Toca da Raposa II, brincando de ser jogador de futebol. Há pouco tempo circulou um vídeo na internet mostrando o garoto, agora com 9 anos e vestido como botafoguense, fazendo um golaço de falta e comemorando como o pai, no tradicional galope inspirado em um joguinho de PlayStation.

Lembro-me de Montillo dizer que o que mais admirava nos mineiros era o jeito afetuoso. A forma como sua família havia sido acolhida em BH o encantava. Uma das confidências que ele fez naquela entrevista foi o desejo inicial de ser repórter. Planejava terminar o segundo grau e iniciar uma faculdade de jornalismo quando o futebol atravessou o caminho e mudou os rumos de sua vida. O fim da linha também foi assunto da nossa conversa. Há cinco anos, ele acreditava que a aposentadoria estava muito distante. Sonhava em atuar na Europa, num time de ponta, desejo que não se concretizou. E depois que parasse, afirmou, iria ser treinador e dedicar-se mais à família. Recordo-me de uma frase, em especial, que faz todo o sentido neste momento: “Vou jogar até quando o corpo aguentar”.

E foi assim mesmo. Quando não mais suportou o drama das contusões – foram cinco em seis meses de Botafogo –, Montillo decidiu que era hora de sair de cena. Iniciar o plano B.  “A vida continua. Ninguém morreu porque deixou de jogar futebol”, declarou, na despedida. É triste ver uma trajetória tão bonita ser interrompida assim, de maneira tão precoce e abrupta, aos 33 anos. Mas a condição física não o permitia mais trabalhar. E a forma digna como ele pôs o ponto final na carreira foi apenas mais um exemplo de que, além de grande jogador, ele é um grande homem. Que tenha sorte daqui para frente.


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