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COPA LIBERTADORES

Como nasce um time campeão

De como um técnico com fama de competente, mas azarado, foi contratado para montar uma equipe vitoriosa e, com apostas ousadas mais uma dose de sorte, tirou o Galo do caminho do rebaixamento para conduzi-lo ao topo da América

postado em 25/07/2013 09:53 / atualizado em 25/07/2013 14:14

Gladyston Rodrigues/ EM
Se dependesse do próprio Cuca, ele não estaria ali naquela manhã de 3 de julho, uma quarta-feira, ajoelhado diante da imagem da Virgem do Rosário, na Catedral de Rosário, principal cidade da província de Santa Fé, na Argentina. Faltavam menos de 12 horas para o jogo de ida contra o Newell’s Old Boys, pela semifinal da Libertadores, e o treinador sentia o peso de estar a quatro capítulos de escrever o desfecho de uma história que por muito pouco não foi interrompida nas primeiras linhas. Logo no início da caminhada, há quase dois anos, a fé fraquejou e o paranaense de voz mansa e cabelos ralos e disformes, triste com o insucesso nos cinco primeiros jogos e com a eliminação pelo Botafogo na Copa Sul-Americana, confidenciou a pessoas próximas que estava disposto a entregar o cargo de técnico do Atlético, apenas 15 dias depois de assumi-lo, em 8 de agosto de 2011.

Mas, ao contrário do zagueiro Lúcio e dos atacantes Riascos e Maxi Rodríguez, a fé não costuma falhar e, ontem, 66 vitórias, 22 empates e 28 derrotas depois, lá estava Cuca à beira do gramado do Mineirão, para liderar o Galo em uma das mais improváveis e emocionantes campanhas de um campeão da Libertadores. “O que é ser atleticano? É sofrer. Nada é fácil”, explicou o treinador na sexta-feira, dois dias depois de perder por 2 a 0 para o Olimpia, o que obrigava o Atlético a alcançar o terceiro milagre seguido para conquistar o título. “Em outro lugar se ganha mais tranquilo. Aqui a gente sofre, sofre, mas tem um sabor melhor do que em outro lugar”, completou, como se estivesse transformando a entrevista em uma crônica de Roberto Drummond.

Aos 50 anos, 29 dedicados ao futebol, Alexi Stival viu, enfim, a manteiga do seu pão cair para cima. A guinada do clube depois de mais de uma década de resultados inexpressivos é fruto de uma mistura de fatores e mudanças na forma de gerir o futebol. E um dos maiores acertos foi justamente a manutenção do treinador, que assumiu a equipe com quase 80% de chance de rebaixamento no Brasileiro. Cuca salvou o time da degola e, na última temporada, se tornou o primeiro treinador em duas décadas a iniciar e terminar o ano à frente do futebol profissional – o último havia sido Jair Pereira em 1991.

SEGUNDA-FEIRA PARA ENTRAR NO MAPA O segundo passo foi montar uma equipe competitiva. No ano passado, o clube trouxe jogadores que assumiram logo um lugar entre os titulares: o lateral-direito Marcos Rocha (que voltou de empréstimo ao América), o volante Leandro Donizete (Coritiba), o atacante Jô (Internacional) e o goleiro Victor (Grêmio), que no início deste ano receberam o retorno de Diego Tardelli (Al Gharafa-CAT), além de peças de reposição importantes, como Gilberto Silva (Grêmio), Rosinei (América-MEX), Alecsandro (Vasco) e Josué (Wolfsburg-ALE).

A contratação mais controversa, que viria a mudar a história do clube, foi efetuada no meio da temporada passada e deixou o mundo do futebol de olhos arregalados. Por volta das 13h30 de 4 de junho, uma segunda-feira, o presidente do Atlético, Alexandre Kalil, desceu a escada de acesso ao campo 1 da Cidade do Galo ao lado da principal contratação de sua gestão e, por que não?, a maior da história do clube. Vestindo camisa de algodão branca, mal ajambrada no corpo, e com semblante de cansaço, o mandatário alvinegro apresentava aos jogadores e à torcida o campeão mundial e eleito duas vezes melhor do mundo Ronaldinho Gaúcho, com a promessa de mostrar que o Galo estava “no mapa do futebol”.

Filho de um dos presidentes mais populares da história do clube, Elias Kalil, que dirigiu o alvinegro de 1980 a 1985, o engenheiro civil Alexandre Kalil, de 54 anos, o 51º presidente do Atlético, iniciou seu mandato em outubro de 2008, depois da renúncia de Ziza Valadares. Com o time vindo de rebaixamento recente – retornou à elite com o título da Série B em 2006 –, Kalil não conseguiu resultados relevantes no primeiro mandato: contratou mais de 70 jogadores e conquistou apenas o Mineiro de 2010, em cima do Ipatinga, que havia derrubado o Cruzeiro na semifinal.

Em sua gestão, cinco treinadores passaram pela Cidade do Galo: Emerson Leão, Celso Roth, Vanderlei Luxemburgo, Dorival Júnior e Cuca. Apesar dos resultados positivos nos dois últimos anos, nem tudo foram flores. Segundo relatório da consultoria BDO, de maio do ano passado, o Atlético é o quarto clube brasileiro de maior dívida (R$ 367,5 milhões), atrás de Botafogo, Fluminense e Vasco e à frente do Flamengo.

A virada do Galo veio de uma tacada certeira em negociação relâmpago, acertada no fio do bigode, entre Kalil e o ex-jogador Roberto Assis, irmão e empresário de Ronaldinho Gaúcho. O atleticano estava no Rio de Janeiro tentando contratar Juninho Pernambucano, quando recebeu ligação de Cuca: “Presidente, nosso camisa 10 saiu do Flamengo”. Horas depois, o dirigente se encontrou com Assis, escreveu a proposta em um papel e o irmão do craque a levou para Porto Alegre. Dois dias depois, diante da possibilidade positiva de desfecho, Kalil desembarcou na capital gaúcha. O diálogo, reproduzido por ele em entrevista ao programa Bola da vez, da ESPN Brasil, foi curto e grosso:

“Menino, você não fala, não?”

“Não, eu sou assim mesmo, presidente.”

“E aí, vamos?”

“Que dia?”

“Amanhã.”

Ronaldinho chegou a Belo Horizonte depois de entrar em litígio com a diretoria do Flamengo, cobrando R$ 40 milhões por quebra de contrato. Ele estreou em 9 de junho de 2012, na vitória sobre o Palmeiras por 1 a 0, numa noite fria de sábado no Pacaembu, pela quarta rodada do Brasileiro. Duas semanas depois, marcava de pênalti seu primeiro gol com a camisa alvinegra, o segundo da goleada por 5 a 1 sobre o Náutico.

A melhora dentro de campo reflete uma ligeira mudança de comportamento do lado de fora. Pouco visto na noite de BH – cidade que o homenageou com o título de Cidadão Honorário –, Ronaldinho escolheu o pacato Condomínio Estância das Amendoeiras, em Lagoa Santa, depois de 14 meses de badalação na noite carioca em sua mansão no Condomínio Santa Mônica Jardins, na Barra da Tijuca, avaliada em R$ 20 milhões. A realidade na cidade da Grande BH é muito parecida com a que ele viveu na melhor época da carreira, no Barcelona. Quando foi eleito duas vezes o melhor do mundo, morava em Castelldefels, numa casa entre as montanhas, longe da agitada vida noturna catalã.

A casa em Lagoa Santa, em terreno de 5 mil metros quadrados, tem dois andares, piscina, churrasqueira, quadra de futebol e muitas árvores. Fica afastada da entrada do condomínio, que tem fiscalização rígida. O aluguel, segundo o mercado imobiliário da região, não sai por menos de R$ 15 mil. O condomínio é de fácil acesso para o craque até seus dois destinos rotineiros. A Cidade do Galo fica a 19 quilômetros de distância, e o Porsche Cayenne do armador, guiado pelo motorista Daniel (ele nunca dirige), não gasta mais do que 20 minutos, sem trânsito. Para o aeroporto de Confins, de onde parte para os jogos e para visitar a família na capital gaúcha, são apenas sete quilômetros. Mas a discrição não faz de Ronaldinho um celibatário. Ele recebe visitas com frequência, organiza festas na varanda da casa, com grupos de samba, amigos e, claro, mulheres.

Nos gramados, o caso de amor com a torcida ajudou o R10 a superar dramas familiares e teve cenas de emoção, como a bandeira de apoio à mãe, dona Miguelina, que travava luta contra um câncer. “É um dos anos mais difíceis da minha carreira, a torcida sempre me ajuda. Não tenho nem palavras para descrever o que é jogar no Atlético”, afirmou o jogador, em outubro do ano passado, ao marcar três gols na goleada sobre o Figueirense por 6 a 0, dois dias depois da morte do padrasto. Com o Gaúcho em campo, o Atlético venceu 31 jogos, empatou 13 e perdeu 10. A primeira promessa – a conquista do título brasileiro, 41 anos depois do primeiro e único título nacional – não foi cumprida. A dívida seria paga com juros e correção em 24 de julho de 2013 – que, nas palavras de Kalil, seria “o ano do Galo”.

A FÉ QUE DEFENDE PÊNALTIS E CRIA UM SANTO Victor Leandro Bagy nasceu na pequena Santo Anastácio, no Oeste paulista, em 21 de janeiro de 1983. Em 12 anos de carreira, defendeu apenas três clubes: Paulista de Jundiaí, Grêmio e Atlético, clube que o anunciou como solução para uma das posições mais carentes da última década, em 29 de junho do ano passado. Desde 30 de maio deste ano, quando pulou no canto direito e, com o pé esquerdo, chutou para a “fronteira do México com os Estados Unidos” o pênalti cobrado pelo atacante Riascos nos acréscimos do jogo de volta contra o Tijuana, que rendeu a vaga na semifinal, ele passou a atender por São Victor.

E foi a fé que fez o goleiro pular no canto certo na disputa de pênaltis contra o Newell’s Old Boys e defender o chute de Maxi Rodríguez, que valeu a vaga na final. “Eu estava preparado para pegar um pênalti. Debaixo do gol, vi uma coisa brilhando. Quando olhei, era um terço de Nossa Senhora, atirado por um torcedor”, conta.

Victor – ops, São Victor – é católico fervoroso e, quando sobram uns minutos, vai ao Santuário da Mãe Rainha, em Lagoa Santa. Ele é o camisa 1 do time dos católicos, reforçado por Marcos Rocha, Réver, Leandro Donizete, Ronaldinho Gaúcho, Jô, Giovani, Gilberto Silva, Jemerson, Rosinei, Josué, Lucas Cândido, Leleu e Cuca. A equipe dos evangélicos é escalada com Pierre, Júnior César, Bernard, Richarlyson, Alecsandro, Leonardo Silva, Rafael Marques, Neto Berola, Lee, Guilherme e Diego Tardelli.

“Foi a fé que nos levou à final”, garantiu Cuca, que carrega um santinho de São Jorge na carteira e na fase final da Libertadores passou a vestir uma camisa com a imagem da Virgem Maria, de quem é devoto. Ajoelhado na beira do gramado, há 15 dias ele viu Victor defender o chute de Maxi Rodríguez e desmoronou em lágrimas, abraçado aos companheiros de comissão técnica, como se a fama de azarado estivesse próxima de ser quebrada. “Ou vocês acham que eu não quero que vocês da imprensa parem de me encher o saco?”, brincou dias depois.

Movido pela fé ou não, o Atlético fez campanha na Libertadores de deixar até os torcedores ateus com a pulga atrás da orelha. Na estreia, em 13 de fevereiro, vitória por 2 a 1 sobre o São Paulo, tricampeão em seis decisões de Libertadores. O jogo marcou a reestreia da cereja do bolo do fortalecido time atleticano: o atacante Diego Tardelli, que retornou ao clube menos de dois anos depois de partir para o mundo árabe.

Ronaldinho Gaúcho e Tardelli formaram um quadrado ofensivo eficiente, ao lado de Jô e do jovem Bernard, que teve evolução marcante sob o comando de Cuca, ambos campeões com a Seleção Brasileira na Copa das Confederações. O zagueiro Réver também fez parte do time de Luiz Felipe Scolari.

Na segunda rodada, na invasão atleticana na Argentina, o Galo goleou o Arsenal de Sarandí por 5 a 2, antes de partir para a Bolívia e encerrar a primeira fase com 100% de aproveitamento, com um triunfo sobre o Strongest (2 a 1). No returno, repetiu o placar contra os bolivianos e os argentinos, em casa, e perdeu para o São Paulo, por 2 a 0, em um “treino de luxo”, expressão usada por Ronaldinho Gaúcho que deixou mordidos diretores e jogadores tricolores.

“Quando está valendo, está valendo”, retrucou aliviado o Gaúcho, tirando uma casquinha da polêmica que sua frase criou, ao eliminar o São Paulo nas oitavas de final, após vencê-los fora (2 a 1) e no Independência (4 a 1). Em seguida, arrancou o empate com o mexicano Tijuana, por 2 a 2, na fronteira com os Estados Unidos, e quando estava se classificando no limite da sorte, com 1 a 1, em Belo Horizonte, o zagueiro Leonardo Silva derrubou o lateral-esquerdo Aguilar na área, obrigando Victor a fazer a primeira intervenção divina no caminho do título.

Nossa Senhora do Rosário apareceu para São Domingos de Gusmão em 1208, na França. Na aparição, a Virgem deu um rosário ao fundador da ordem dos dominicanos. A devoção à santa foi trazida para a América Latina pela Ordem dos Pregadores e difundida mais recentemente por João Paulo II, devoto que dedicou o pontificado a Maria. Pois na manhã de 3 de julho citada no início desta história, Cuca, aos 50 anos, estava diante da imagem da Virgem, a poucas horas de travar uma das batalhas mais difíceis da carreira, pedindo proteção. Os gols de Maxi Rodríguez e Scocco, na segunda etapa da partida daquela noite, obrigaram o técnico a se apegar ainda mais à santa. Sete dias depois, o Galo vencia por 2 a 0, com gol salvador do contestado Guilherme depois do apagar das luzes, que forçaria os pênaltis. E São Victor estava lá.

Na primeira partida da final, o treinador exibiu imagens de atleticanos acampados em frente à Cidade do Galo, como incentivo aos jogadores. Mesmo assim, o placar de 2 a 0 da semifinal se repetiria para o adversário. Cuca rezou com maior fervor e, ontem, driblando a razão e a lógica, recebeu a resposta das preces em forma de mais um milagre atleticano.

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