Estádio JK, do Cruzeiro, construído na década de 1940 e reformado em 1945 (Foto: Arquivo EM)

Quando se reuniu na Casa Ranieri para fundar o Palestra Itália, no segundo dia de 1921, aquele grupo de rapazes da colônia de seu país na então adolescente Belo Horizonte jamais poderia imaginar que, 100 anos depois, a agremiação que duas décadas depois viraria Cruzeiro Esporte Clube e se expandiria como uma das potências futebolísticas brasileiras e sul-americanas estaria vivendo a maior crise de sua história.




Crise financeira, judicial, moral, futebolística, de imagem, de identidade... Um tsunami de irresponsabilidades e falcatruas a que foi conduzido por dirigentes cujo destino final bem que poderia ser a cadeia %u2012 um recorte em azul e branco do próprio país em que vivem, certos de sua impunidade.

Não penso que o Cruzeiro vá desaparecer, como sugerem muitos. Um clube capaz de arregimentar cerca de 9 milhões de torcedores espalhados por várias partes do mundo não desaparece assim. Mas vai penar para recuperar a grandeza e a condição de time grande. Muita paciência será necessária por parte dos cruzeirenses, vexames ainda farão parte desse processo de reconstrução que consumirá alguns anos.

E para que essa reconstrução seja possível, o Cruzeiro precisará, antes de tudo, saber lidar com seu passado. Algo que não percebo, por melhores que sejam as intenções de quem o comanda há pouco tempo. Saber lidar não significa esquecer os grandes títulos %u2012 duas Libertadores, duas Supercopas Libertadores, Recopa, Copa Master e Copa Ouro Sul-Americanas; quatro Brasileiros, seis Copas do Brasil, 39 Mineiros, duas Sul-Minas, Supercampeonato Mineiro, Copa dos Campeões Mineiros, Copa Centro-Oeste... Estão todos lá representados na galeria de troféus do clube.




Mas não dá para ficar vivendo deles, usando-os como único exemplo de grandeza. A necessidade exige outro tipo de prova de grandeza. Que está lá na própria história da agremiação. Quando, por exemplo, a colônia se cotizou, comprou o terreno no Barro Preto em 1923 e construiu seu estádio. Se não o fizesse, o então nascente clube estaria alijado das disputas oficiais, por pressão dos concorrentes, agraciados com terrenos doados pela prefeitura da jovem capital mineira.

Que foi novamente exibida em 1945, quando a mesma colônia, já reforçada por milhares de brasileiros, reformou o estádio, trocando as arquibancadas de madeira por cimento, ampliou a capacidade para 12 mil e o nomeou Juscelino Kubitschek. Ou em fins dos anos 1950, quando voltou a abrir os bolsos para custear a construção da sede campestre, que salvou o Cruzeiro da falência. À frente desse último processo, um então jovem empreendedor que entendia mais de bons negócios do que propriamente de futebol, mas ainda assim estaria destinado a ser o maior presidente da história celeste: o italiano Felício Brandi.

O mesmo Felício que, para aproveitar a construção do Mineirão no início dos anos 1960, usou da astúcia típica de uma Raposa para montar o time que explodiria junto com ele no cenário nacional. E de promover ao mesmo tempo uma estratégia de marketing que multiplicaria enormemente sua torcida, apelidada de China Azul pelo cronista do Estado de Minas Roberto Drummond. No fim daquela década, ele comprou o terreno na Pampulha em que foi construído o primeiro Centro de Treinamentos de um grande time brasileiro: a Toca da Raposa, que recebeu a Seleção Brasileira na preparação para duas Copas do Mundo e recentemente recebeu seu nome.




Neste 2021 que marca seu centenário, o Cruzeiro está diante do desafio de se refundar, se reconstruir. Entre seus milhões de torcedores, há empresários que podem participar desse processo, profissionais do marketing, do direito, das finanças, tributários... A inspiração de que precisam está lá na história iniciada na Casa Ranieri. A reconstrução requer trabalho árduo, de longo alcance, com tropeços e vexames inevitáveis no meio do caminho. Mas é um processo obrigatório. Ao final, que a torcida encontre nele mais um motivo de orgulho, como as taças que reverencia em sua galeria.

Cláudio Arreguy
Ex-editor de Esportes do Estado de Minas, colunista do site Ultrajano, titular do Canal Arreguy no YouTube e autor de Os dez mais do Cruzeiro