PUNIÇÃO

Luis Suárez, o bode expiatório da Fifa

Punição deveria existir, mas não ao ponto de extirpar o futebol do atacante uruguaio

postado em 27/06/2014 19:24 / atualizado em 27/06/2014 19:48

Emanuel Leite Jr. /Especial para o Diario

Fifa.com / Getty Images
Reincidente, ao atacar o zagueiro italiano Chiellini com uma mordida no ombro, o atacante uruguaio Luis Suárez repetiu o ato inconsequente pela terceira vez em sua carreira. A Fifa agiu com celeridade e severidade na punição ao jogador. Além da suspensão por nove jogos pela Celeste e multa de 100 mil Francos, a entidade máxima do futebol resolveu banir do futebol por quatro meses o atleta do Liverpool. Indo além de sua alçada - a esfera esportiva - a Fifa ainda impôs a proibição de entrar em estádios de futebol até mesmo para assistir a um jogo. Ou seja, não foi apenas o jogador Luis Suárez quem foi punido, foi o cidadão uruguaio que sofreu, também, uma pesada sanção por parte da Fifa.

Ninguém, em sã consciência, há de defender o ato selvagem do atacante. Ninguém que preze pela honestidade intelectual há de criticar que tal atitude seja punida. Porém, o que não se pode aceitar é que a Fifa, quase que como se tivesse tomada por um afã de revanchismo, tenha resolvido eleger Luis Suárez como um bode expiatório.

A punição ao uruguaio é demasiadamente severa. Desumana, na medida em que foge da alçada esportiva - seu ato infracional ocorreu dentro das quatro linhas do gramado - e atinge os direitos individuais do cidadão Suárez. Direitos consagrados desde a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 26/08/1789. Eric Hobsbawm a definiu como “um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres”, ou seja, a garantia da liberdade do indivíduo perante o Estado, a limitação e o controle do poder estatal.

Nas palavras do filósofo italiano Norberto Bobbio, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão fundou uma nova perspectiva, base do Estado moderno e pilar do Estado de Direito. O reconhecimento dos direitos do homem é básico para a salvaguarda da democracia. A evolução histórica e a universalização das declarações de direitos fundamentais atingiram o seu mais importante patamar em 10 de dezembro de 1948, quando foi assinada, por 48 Estados, na cidade de Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, na terceira sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU.

Ao fazer de Luis Suárez um bode expiatório, a Fifa contraria séculos de evolução dos direitos do Homem. A vedação ao atleta do convívio de seus companheiros de clube - ao proibir, até mesmo, que treine em seu clube - e, ainda pior, a proibição de que entre em um estádio de futebol é um ato que condena o jogador uruguaio à marginalização do isolamento, da exclusão. Portanto, é uma punição desumana, uma vez que se assemelha ao ostracismo grego que em nada se coaduna com o entendimento moderno da pena tida como instrumento de ressocialização.

Fifa.com / Getty Images
Não é por acaso, portanto, que o treinador da seleção uruguaia, Óscar Tabárez, tenha se referido à punição da Fifa como excessiva e que a entidade tenha tratado Suárez como um bode expiatório, referindo-se à teoria da Psicanálise. Esta teoria serviu de base para estudos da Criminologia, fundamentando as chamadas as chamadas Teorias Psicanalíticas da Criminalidade.

A expressão bode expiatório tem sua origem nos tempos da Antiguidade, nas antigas tribos judaicas. O bode representava um papel simbólico nas cerimônias hebraicas do Yom Kippur, o Dia da Expiação. O pobre animal era escolhido para concentrar em si todos os pecados do povo de Israel. Um sacerdote colocava as suas mãos na cabeça do coitado do bode e confessava para o infeliz animal todos os pecados da população de Israel. Posteriormente, o bode era solto na natureza selvagem a fim de que pagasse por todos os pecados cometidos pela gente de Israel. Por isso que se chama “bode expiatório” - expiação significa penitência, ou seja, castigo ou sofrimento de pena para se obter a remissão dos pecados.

Fifa.com / Getty Images
Dentre as Teorias Psicanalíticas da Criminalidade, existe uma teoria que relaciona a ideia do bode expiatório com a necessidade da sociedade em ver o deliquente ser punido de forma exemplar. São as Teorias Psicanalíticas da Sociedade e a Interpretação Funcional da Reação Punitiva. Para esta teoria, o Direito Penal não busca, objetivamente, a justiça ou a prevenção do crime. Na realidade, a pena tem uma função de satisfazer uma necessidade da “sociedade sancionadora” que “necessita” do castigo.

Tal como o pobre do bode, que leva consigo para o deserto todos os pecados do povo de Israel, a pena infligida ao criminoso tem um caráter coletivo e não individual (como é colocado pelo Direito Penal vigente). Na realidade a pena não serve para reeducar o indivíduo a fim de recolocá-lo no convívio social; o castigo imposto ao deliquente é o exemplo visível que a sociedade impõe ao “bode expiatório”, para que sirva de controle aos impulsos criminosos de todas as pessoas, uma vez que a própria sociedade se identifica com o criminoso.

Eis que a teoria do bode expiatório nos ajuda a compreender a severa punição imposta pela Fifa. Ao punir com excesso de rigidez Luis Suárez, a entidade máxima do futebol sacia o desejo daqueles que ansiavam por ver o jogador uruguaio punido exemplarmente. Todos os humanos são passíveis a erros e defeitos. Os jogadores são seres humanos. Expiar os pecados - atos violentos e desleais em jogos de futebol - através do bode expiatório Luis Suárez representa um mal ainda maior para o mundo do futebol.

Fifa.com / Matthias Hangst/Getty Images