Fred Melo Paiva
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DA ARQUIBANCADA

Quarenta anos depois

O Atlético ganhou de 4 a 0, porque em 1978 não havia possibilidade de perdermos nenhum jogo

postado em 13/10/2018 12:00 / atualizado em 15/10/2018 14:09

Arquivo EM

A primeira vez que vi o Mineirão foi num Atlético e América, provavelmente em 1978. Subimos as escadas que acessavam o anel superior eu, dois tios e dois primos, e de repente se abriu aquela imensidão de concreto e grama. Eu tinha seis anos, é provável. Não conhecia o mar, o que só aconteceria cinco anos depois, aos 11, em Copacabana. Foi a mesma inesquecível sensação de se perder o fôlego diante da avassaladora grandeza de alguma coisa que nos torna desprezivelmente pequenos.

Foi a primeira vez, também, que eu vi um mar de gente. À exceção de dois tios e uma tia, na populosa família da minha mãe – 15 irmãos, 35 primos de primeiro grau, seus cônjuges, namorados, namoradas, noras, cunhados e tios tortos – só havia atleticanos. Aos seis anos, depois de alcançar o topo da escada, provavelmente no portão 27, descobri que, além da populosa família, todos os tios do mundo eram atleticanos, todos os primos, todos os pretos e todos os brancos.

Meu tio me mostrou do outro lado a diminuta torcida do América, que na geografia do velho Mineirão ocupava a arquibancada atrás do gol, naquela parte que viria a ser tomada pela Galoucura a partir de 1984. Nunca tinha visto um americano em minha curta existência, e meus três tios cruzeirenses eram o que de mais exótico eu já tinha vislumbrado na fauna humana. Fiquei alguns segundos fixado naquela gente estranha, verde como marcianos que tivessem descido à Terra para aquela ocasião especial.

O Atlético ganhou de 4 a 0, porque em 1978 não havia possibilidade de perdermos nenhum jogo, todos eram favas contadas, bastando que se aguardasse o lento desenrolar dos 90 minutos. Na minha ingenuidade de menino, em meu absoluto desconhecimento a respeito das coisas cíclicas da vida, seus altos e baixos, vitórias e derrotas, merecimentos e sacanagens diversas, eu tinha certeza de que o Atlético era o melhor time do mundo (e é provável que fosse). Mais que isso, a maior coisa que alguém já tinha inventado no mundo. E que era questão de tempo, o tempo curto dos meninos, para que ganhássemos o Brasileiro, a Libertadores, o Mundial, os torneios que eram comuns de se disputar na Europa contra os pernas de pau de Real Madrid, Barcelona e PSG. “Galo é Galo, o resto é bosta”, cantava-se à época, no ritmo décadas depois usado para o famoso “Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe Galo, seremos campeões”.

Os 4 a 0 sobre o América, além de meu primeiro jogo no Mineirão, inauguraram um trauma de infância que só vim a superar à medida que ganhei peso, ficando impossível que fosse arremessado às alturas. Pois esta era a prática dos meus tios a cada gol que se anotasse: pegavam a meninada e jogavam pra cima. Não devia passar de um metro além de suas cabeças, mas quando se é menino tudo parece maior, de forma que minha carcaça craniana triscava o concreto que cobria as arquibancadas. Quando o jogo era fácil, como foi aquele, chegava a torcer secretamente contra a goleada, panicado com a possibilidade de alçar voo. Mas ninguém podia com Reinaldo, e a decolagem era questão de tempo. Lá do alto podia ver o seu punho cerrado.

Em 1978, a ditadura já ensaiava sair de cena. A anistia, no ano seguinte, traria de volta os exilados. A Globo não conseguiu esconder as manifestações das Diretas Já, embora tenha tentado. Nos anos 1980, nada poderia ser mais cafona do que a farda militar. No palco do Rock in Rio, no dia em que Tancredo venceu Maluf no Colégio Eleitoral, Cazuza discursou emocionado antes de emendar “Pro Dia Nascer Feliz”. A esperança vencia o medo, muito antes do slogan que fez do metalúrgico Presidente da República.

Quarenta anos depois, meu tio e meus primos votam no candidato que homenageia o torturador. Esqueceram-se do punho cerrado do Rei. Há negros que votam no racista, mulheres que votam no machista, pobres que votam contra os pobres. “Imaginei que, Deus do céu, quando a violência política saísse das redes e chegasse às ruas, o país finalmente acenderia o definitivo sinal de alerta contra o pesadelo crescente”, escreveu Lira Neto, biógrafo de Getúlio e Padre Cícero. “Quando suásticas fossem pintadas em muros, impressas a sangue nos corpos, seria chegada a hora de todos concentrarmos esforços para reavaliar nossa insanidade coletiva. Quando, no limite da loucura, matassem alguém, a nação enfim cairia em si, aterrorizada consigo mesma. Pois bem. Nada disso parece deter o avanço da tragédia. De omissão em omissão, mergulharemos no abismo irremediável de nosso próprio inferno civilizatório.”

Eu queria poder subir as escadas do estádio pra ver Atlético e América, queria de volta aquela minha ingenuidade de menino, o meu absoluto desconhecimento das coisas da vida em 1978. Mas, que merda!, eu não consigo.

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