Fred Melo Paiva
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DA ARQUIBANCADA

O que nos resta a esta altura do campeonato

'Que o Flamengo faça 10 minutos de silêncio por cada menino morto em seu alojamento, porque isso dirá muito mais do que todos os discursos de Witzels e Crivellas'

postado em 09/02/2019 12:00 / atualizado em 09/02/2019 12:01

AFP / CARL DE SOUZA
Acordo na manhã de sexta-feira com a notícia do incêndio no centro de treinamento do Flamengo, o Ninho do Urubu. Dez meninos das categorias de base morreram. Dez. No dia anterior, uma chuva destruíra a cidade, fazendo seis vítimas. Em 1966, há 53 anos portanto, foram 250 mortos. Não muda nunca, não se faz nada. Assim como o crime da Samarco/Vale em Mariana matou 19 e agora, no repeteco em Brumadinho, as vítimas poderão chegar a 400, entre mortos e desaparecidos. Não se pagou até hoje nem um único real das multas impostas à empresa pelo Ibama, não se realocou os atingidos. A única lição de Mariana é sobre como protelar. Aqui se faz, aqui se paga a melhor banca de advogados. Aqui se faz, aqui se safa. Na mesma sexta-feira em que perdemos os meninos no Flamengo, soou o alarme em Barão de Cocais. O Brasil é uma guerra na selva.

Quando aconteceu o crime de Brumadinho, achei que deveríamos ter parado o futebol. Que sentido fazia aquilo, 22 homens atrás de uma bola enquanto milhares de pessoas buscavam seus mortos sob toneladas de lama, a 90 quilômetros do estádio? O Atlético propôs o adiamento da rodada, não exatamente por iniciativa própria, mas pelo clamor de seus torcedores. O Cruzeiro não quis. O brasileiro é uma gente calejada no exercício da insensibilidade e da maldade: há 519 anos corremos atrás da bola enquanto matamos e morremos covardemente no linchamento, na tocaia, na chacina, no estupro, no desprezo absoluto pelos pobres.

Agora penso comigo: parar pra quê? Pra assistir às “autoridades” sobrevoando de helicóptero a cena do crime enquanto negociam as leis com os assassinos? Pra ver o presidente da Vale dizer que não tem culpa de nada porque seguia as leis que ele próprio criou, financiando deputados, pagando lobistas no Congresso e nas Assembleias? Parar pra ver presidente e governadores em ação no Twitter? A Damares a dizer groselhas? A junta de filhos a destilar ódio e cinismo? Parar pra ver Thiago Neves tirar um sarro com Brumadinho e, agora, colocar fotinha de luto em rede social? Parar pra quê?.

Melhor que o Flamengo entre em campo, como entraram Atlético e Cruzeiro, porque pelo menos existe uma beleza naquele ajuntamento de gente. Que se faça como fizeram os colombianos e o Atlético Nacional diante da tragédia da Chape, lotando o estádio, cantando e chorando. Não pode parar, tem de ser o contrário, porque Atlético, Cruzeiro, Flamengo, esse é o amor possível nessa terra de tanto desamor, tanta falta de empatia. O que sobra são a hipocrisia e o oportunismo, a ganância e salve-se quem puder. Que o Flamengo faça 10 minutos de silêncio por cada menino morto em seu alojamento, porque isso dirá muito mais do que todos os discursos reunidos de seus Witzels e Crivellas, que lástima essas pessoas, que poço sem fundo.

Vejo agora que a Globo emitiu nota se solidarizando com os familiares das vítimas no Ninho do Urubu e, dona dos direitos de transmissão do jogo, cancelou o Fla-Flu deste fim de semana. Não vi essa nota no Atlético x Cruzeiro transmitido pela Globo. Que assim seja, que o Galo continue jogando diante de todas as tragédias, porque só o Galo salva, e já que nos tiraram tudo, que não roubem da gente esse naco de alegria e de amor. Que nos seja permitido abraçar o desconhecido no assento ao lado, e que a gente chore junto a tragédia e a glória, ainda que, terminados aqueles 90 minutos de estado de exceção, voltemos à nossa miserável realidade.

O Galo joga hoje, joga terça, melhor que fosse todo dia. Que o jogo decisivo do meio de semana e a caminhada na Libertadores possam nos livrar das trevas, porque ainda é fevereiro e parece que estamos a nos imolar há mais de ano. Mais do que nunca torço para que o Atlético nos surpreenda, e que de repente se acerte, e que seja de novo aquela loucura toda, e que volte o Tardelli, e que tenha um pênalti aos 48 do segundo tempo, e que os 10% da nossa cabeça animal se preencha daquele pensamento único, daquela esperança infinita – idiota diante da tragédia, fundamental para que a gente tenha alguma força pra seguir em frente. A esta altura do campeonato, o que nos resta.

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