Fred Melo Paiva
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DA ARQUIBANCADA

Beth Carvalho estará sempre viva quando o Galo triunfar

"Sob os auspícios da Beth Carvalho, sonhávamos as glórias que jamais viriam, tiradas de nós na mão grande, a prova da inexistência de Deus"

postado em 04/05/2019 12:00

<i>(Foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)</i>
“Chora, não vou ligar (não vou ligar), chegou a hora, vais me pagar. Pode chorar, pode chorar. É o teu castigo. Brigou comigo sem ter porquê. Vou festejar, vou festejar o teu sofrer, o teu penar. Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.”

É possível que o atleticano tenha cantado seu segundo hino, pela primeira vez, em 1979. Um ano antes, Beth Carvalho tinha lançado o LP De pé no chão, resultado de seu encontro com o bloco do Cacique de Ramos, que tinha entre seus anônimos Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila e Jovelina Pérola Negra. Junto com Sereno e Ubirany, Guineto liderava também o desconhecido Fundo de Quintal. “Amadrinhado” por Beth, esse pessoal faria uma revolução no samba, inaugurando um outro jeito de tocar e compor.

Em 79, Vou festejar foi um enorme sucesso no carnaval. “Um típico samba de embalo, feito para o Cacique, que, no entanto, não chegou a ser cantado nos desfiles do bloco”, ensina o marechal Álvaro Costa e Silva, na Folha de S.Paulo. “A música, apresentada com a forte percussão em primeiro plano, foi a peça que abriu os caminhos para a moda do pagode, que dominaria a produção fonográfica brasileira nos anos seguintes.” Algo que se degeneraria no “pagode pop”, ou “pagode romântico”, de lamentável recordação.

A biografia do Rei, Punho cerrado, de Philipe Van R. Lima, crava 1978 como o ano em que pela primeira vez a torcida do Galo cantou sua segunda Marselhesa. É possível também, visto que ali se iniciou a campanha que viria a dar no hexacampeonato mineiro de 1983, uma época de sonho em que nos cansamos de festejar o sofrer e o penar do lado de lá da arquibancada.

Era (e é) a música do triunfo arrancado a fórceps, a canção do título, espécie de “É campeão” — e por isso havia de se ter certa responsabilidade para entoá-la sem atrair o mau agouro. Quando, enfim, os deuses do futebol davam o OK, aquilo emergia de dentro da gente a acalentar a alma e estufar as veias do pescoço. Difícil imaginar epifania mais grandiosa, felicidade mais contundente. O Mineirão tremia nas bases de seu concreto carcomido e, sob os auspícios da Beth Carvalho, sonhávamos as glórias que jamais viriam, tiradas de nós na mão grande, a prova da inexistência de Deus.

Anos depois, Beth Carvalho estava de corpo presente no jogo que celebrou o retorno do Galo à Série A. O cruzeirense diga o que quiser, mas quem viveu a campanha da série B, desde a queda diante do Vasco, com 60 mil vozes a cantar o primeiro hino, sabe da mágica que foi aquilo, algo que nenhuma Champions League jamais chegará aos pés. É provável que naquele dia, Beth tenha cantado para o seu maior e mais impressionante público, a chorar com ela todas as suas desgraças, e também a sorte de ser atleticano.

Quando criança, a gente sonha. Quando a gente cresce, os sonhos desmoronam. Nesse ínterim, confesso envergonhado ter me debatido com o sentido, para nosotros, daquela letra: “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”. O amigo Ribas crê que o verso destina-se ao próprio Atlético, sempre a nos trair. Rasgamos a carteirinha do clube para, no dia seguinte, cornos mansos, juntar os cacos com o durex, prontos a mais uma chance.

Creio eu, contudo, depois de muito elucubrar, que a mensagem se destina ao Cruzeiro, que não existiria não fosse a existência do Atlético, uma reação à condição original de time unânime, um Barcelona na Belo Horizonte dos anos 1900. Fomos nós que pegamos esses caras pelas mãos — e a isso eles pagaram ao modo da raposa, essa traíra do mundo animal.

Claro que conferimos a Vou festejar um sentido próprio. Aquilo, estava claro, era uma música de amor. Errado. Era (e é) uma música de protesto, a exemplo de Vai passar, de Chico Buarque.  A própria Beth explicou do que se tratava a letra, numa nota oficial que escreveu em 2016, repudiando sua execução durante uma manifestação pelo impeachment de Dilma. “Gostaria de saber de quem foi a infeliz ideia de colocar a música Vou festejar (de Jorge Aragão, Neoci Dias e Dida) em um carro de som na passeata do dia 16/8. Para que fique bem claro, eu, Beth Carvalho, sempre me posicionei ao lado de líderes como Che Guevara, Fidel Castro, Hugo Chávez, Leonel Brizola, João Pedro Stédile. A música Vou festejar sempre representou movimentos de esquerda e de abertura política como as Diretas já e o segundo turno de Lula contra Collor, em 1989.” Os militares traíram o país e, naqueles idos de 78, a hora começava a chegar: “Vais me pagar, pode chorar, pode chorar”.

Beth Carvalho morreu fiel às suas ideias, ao samba e ao Botafogo. Mas estará sempre viva quando o Galo triunfar. Obrigado por tudo! Inclusive por aquele autógrafo na minha camisa do AC/DC, que eu guardo como um troféu.

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