Gustavo Nolasco
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DA ARQUIBANCADA

Meu ídolo fez 97 anos

Certeza teve em 1930: quando crescesse seria um colecionador de troféus. A partir de então, nunca mais parou de conquistá-los

postado em 03/01/2018 08:00 / atualizado em 06/01/2018 12:29

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Ontem, no seu aniversário, fui lhe dar parabéns. Ele estava sentando ao lado do velho portão da rua Guajajaras. Levantou-se, me deu um abraço forte e perguntou: “quer ouvir mais uma história?”. 

Sempre que o encontro, é esse sem fim de recordações. Da infância sofrida, da juventude questionada, do dia que precisou enfrentar o rei, quando aprontou uma molecagem do outro lado dos Andes e por aí vai. Se Deus quiser, chegarei aos 97 anos de idade como ele: lúcido, alegre e com essa quantidade de histórias bonitas de vida para contar.

As minhas preferidas são as do dia em que ele nasceu, um verão de 1921. Sua mãe, chamada Comunidade Italiana, cobriu-lhe com uma manta verde, vermelha e branca e pediu aos amigos Noce, Perona, Piancastelli, Lodi, Spangnulo, Ranieri e Pace para correrem da rua dos Caetés até os guetos da cidade anunciado a sua chegada.

A infância foi pobre e dolorosa. Seu primeiro brinquedo só ganhou aos seis anos idade. Uma pequena taça deixada por um amigo da família na sala de estar. Junto dela, um bilhete: “pequeno garoto, que isso lhe inspire a lutar nos campos contra os exploradores dos imigrantes e operários. Belo Horizonte, 09 de janeiro de 1927”.

Na adolescência, diversão só aos domingos. Uma macarronada no quintal, um jogo de bocha, os velhos disputando padrone e sotto e a certeza de que a qualquer momento, seu mais fiel amigo, Ninão, filho do “Seu” Fúlvio Fantoni, subiria a rua trazendo um presente em forma de gol.

Ele fala sempre da família Fantoni com saudade. De um tempo onde vivia a correr do Prado, cruzando o Barro Preto, até chegar ao reduto do bairro Floresta. Nessa parte da história, suspira e com a voz baixinha, lembra de velhos amigos. “Scarpelli, Magnavacca, Pirani, Azevedo, Lazzarotti, Lambertucci, Savini, Lemos, Savassi, Mancini, Greco, Magalhães, Brandi, Granata, Gatti, Frota Cruz, Ciscotto, Masci, Dorela, Ceschiati, Figueiredo, Chiari, Pampolini, Fratezzi, Rodrigues, Terenzi, Boschi, Falci, Bambiri, Lunardi, Tamietti, Marcuci, Gasparini, Brognoli, Miraglia, Tassini, Pelegrini...esses e muitos outros”.

O maior segredo que já me contou foi de sua passagem de sete a dez anos de idade, nos idos de 1928 a 1930. Certa feita, Ninão chegou em sua casa com Nininho, Bengala, Piorra e Rizzo. Traziam para ele uma linda trinca de taças. Naquele instante, lhe veio a certeza do que seria quando crescesse: um colecionador de troféus. A partir de então, nunca mais parou de conquistá-los.

Numa dessas nossas prosas, colocou na vitrola uma música do Jadir Ambrósio, apontou o dedo para o céu azul, salpicado por cinco estrelas e me disse: “menino, a gente que não nasceu em berço de ouro, precisa lutar muito para vencer na vida”. Em seguida, contou como quase morreu em 1954. Aquilo serviu-lhe de lição e do fundo do poço, chegou à glória poucos meses depois de completar 45 anos.

A maturidade veio quando parou de se iludir. Se quisesse tornar-se o maior colecionador de troféus da região, teria de pegar a estrada. Dizia ele: “olhe para essas montanhas. Você precisa transpô-las para lhe respeitarem”. Foi o que fez numa noite chuvosa de 1966.

Chegou ao bairro pantanoso do Pacaembu, em São Paulo. Cansado, mas ladeado por uma caravana comandada por uns tais de Raul, Procópio, Piazza, Tostão, Natal e Dirceu, enfrentou tudo. Mesmo tendo contra si o rei do mundo, em carne e osso, trouxe um dos mais belos troféus de sua coleção. Quarentão que era, conquistou o Brasil. Veja só, o destino...

Depois disso, teve de aprender a ser o maior. Sempre feliz, com feitos bonitos e inesquecíveis, mas sem nunca esquecer sua origem humilde. Talvez por isso, as inúmeras famílias que vinham tentar a sorte na cidade grande, povoando as periferias e os bairros populares, o escolhiam como “porto seguro”. Tornou-se o amigo da multidão. O povo todo o amava, pois era capaz de dividir domingos alegres e festivos num templo construído para ele, chamado Mineirão.

O ponto alto de nossa resenha acontece sempre quando eu o provoco e peço que me fale sobre seus dois maiores amigos. Ele sorri, se ajeita na cadeira e me atende, mas nunca antes de repetir o aviso de sempre: “se eu tiver de contar todas as alegrias que vivi junto com o Felício e o Carmine, a gente vai ficar aqui uns 200 anos. Pergunte ao Plínio Barreto se estou mentido!”.

Juro! Se eu pudesse, viveria 200 anos só para ouvi-las.

Quando ele fala da sua completa maturidade, que chegou nos idos de 1991, não se cansa de dizer sobre uma Belo Horizonte, uma Minas, um Brasil e uma América incontestavelmente azuis. Foi quando sua coleção de troféus começou a se multiplicar incontrolavelmente. Daí em diante, veio gente de todo o canto a lhe entregar uma peça nova: os Masci, os filhos do Oliveira Costa e o velho menino dos Pinho Tavares.

Hoje, os meus olhos brilham de vaidade quando lhe vejo. Esse imigrante, proletário, Robin Hood azul, tornou-se o amigo de todas as classes sociais, raças e gêneros. O querido do povo.

Ontem, ao me despedir, limpei minhas lágrimas de felicidade e disse a ele: “parabéns, meu vovô amigo, meu ídolo, meu tudo azul e branco, minha enciclopédia de páginas heroicas imortais. Para sempre vou te amar, meu Cruzeiro”.

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