Gustavo Nolasco
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DA ARQUIBANCADA

Proibido para menores

Imoralidade é levar a camisa de um acusado de estupro para a saleta de troféus

postado em 07/02/2018 10:35 / atualizado em 07/02/2018 10:49

Agência i7/Mineirão

Éramos 50 mil ensopados. A chuva caiu durante todo o domingo. Antes, depois e durante aquela cena inconcebível que havíamos presenciado num momento de catarse. Dezenove horas. Cedo ainda para entender se realmente havíamos visto aquilo acontecer no nosso estádio, o Mineirão, ou se foi o mais perfeito truque de ilusionismo da história da humanidade.

Desci sem rumo pela escadaria. Ganhei a Abraão Caram. Não senti nenhuma mísera gota cair sobre o manto sagrado durante o caminhar trôpego pelas ruas laterais. Lembro-me de um amigo, a quem chamo de Poeta Azul, caminhando comigo, mas éramos silêncio. Todos à nossa volta eram silêncio. Embasbacados. “Aquilo realmente aconteceu?”. A multidão se perguntava em silêncio.

“Foi um gol pornográfico”. Outro quase zumbi, envergando as cinco estrelas no peito, passou e sussurrou aquilo. Chamava-se André. Aquela frase me despertou imediatamente. Foi quando acreditei no que De Arrascaeta acabara de fazer diante da maior torcida de Minas Gerais.

Profeta André, esteja onde estiver, agora posso te responder: sim, foi realmente um gol pornográfico. Daqueles com tarja preta: “Proibido para os racionais”. Grafado em vermelho o aviso de “não recomendado para pessimistas”. Iniciado como letreiro de cinema, “Se alguém não se levantar e bater palma, denuncie! É crime!”.

Só hoje, quarta-feira, consigo pensar naquele voleio sem a parcialidade da euforia. Sem a idolatria barata a quem ainda não a conquistou. Mas é preciso admitir, De Arrascaeta é daqueles imprevisíveis. Isso é ruim? Pelo contrário, o coloca num status de que sempre se deve esperar algo dele. Se fosse previsível, seria sempre bom, como Alex ou Dirceu Lopes (o que, evidentemente, sabemos ser impossível), ou sempre ruim, como tantos cabeças de bagre que já aturamos com a nossa 10. O que, obviamente, também não é o caso.

Quem nunca passou raiva com os apagões do Arrasca? Mas qual nunca se encantou com algo genial desse pequeno uruguaio prodígio?

De Arrascaeta foi pornográfico no dilúvio domingueiro. Não fosse um jogo contra o América Mineiro, o mais prepotente de todos os pequenos; não fosse uma rodada da insignificante Country Cup, confessaria ao profeta André: “Se a literatura brasileira tem o seu rodriguiano anjo pornográfico, agora, o futebol tem o dele”.

Mas não exageremos. Seria esquecer o nível de exigência típico de nós, cruzeirenses, acostumados com inúmeras outras obras de arte produzidas desde Niginho Fantoni. Seríamos negligentes aos excessos, a porta de entrada para manchas que se veem em outras torcidas, que por exemplo, se prestaram ao papel de transformar um racista em santo por uma ação em campo ou de levar a camisa de um acusado de estupro para sua saleta de troféus.

Mas é véspera de carnaval. Tempo de leveza. Momento de nos permitirmos extravasar, brincar e nos iludir com um mundo pronto a acabar na quarta-feira. Porém, se assim for, iremos felizes por termos assistidos, ensopados, àquela bola fantasiada de voleio, nos pés de um passista uruguaio, desfilando numa passarela azul e repleta de estrelas.

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