Gustavo Nolasco
None

DA ARQUIBANCADA

O time que não vendeu sua história

No Barro Preto, o tempo carcomeu a madeira, levou gramado e traves, mas preservou a memória do Cruzeiro

postado em 02/05/2018 08:00 / atualizado em 01/05/2018 22:30

Arquivo/Cruzeiro


Quando eu era pequeno, meu pai sempre me dizia: “conquiste suas coisas com trabalho, pois só assim dará valor a elas”. Nessa semana, ao lembrar do Dia do Trabalhador e do Cruzeiro, respirei aliviado por pensar na grandeza de como foi construída a história do meu clube.

Um time de Zés, Paulos, Felícios, Ninões, Nininhos e muitos Geraldos, dos quais, Geraldo II foi a mais perfeita tradução da liga entre trabalho, humildade e amor às próprias conquistas.

Geraldo Domingos, o segundo, não era italiano, mas nasceu numa época onde os imigrantes (italianos e japoneses) foram a mão de obra escolhida pelo governo e pela elite brasileira para substituir os escravos nos campos e nas cidades.

Cresceu sem o direito de se dar ao luxo de cursar medicina, pois, naquela época, faculdade era só particular e ao alcance apenas dos garotos, homens, brancos, filhos das abastadas famílias de Belo Horizonte. Não tinha muito tempo para passear no Parque Municipal. Geraldo II era pedreiro.

Fazia parte do povo, operários, artesãos, negros e italianos. Pobre ou não, gente que precisava trabalhar muito e cedo para sobreviver. De suas mãos, subiram casas, mercados, praças e um estádio de futebol. 

Também segurou muito couro, pois Geraldo decidiu ser goleiro. Foi um dos maiores. Um atleta colossal com 354 partidas com o manto sagrado. Ágil ao sair do gol e destemido para lançar-se à bola nos pés dos oponentes.

Da marmita, Geraldo tirava forças para colocar tijolos e energia para seus saltos a impedir que clubes da elite vazassem as redes do gol do seu amado Cruzeiro/Palestra.

Há quem diga que a maior glória de Geraldo II foram as impensáveis 34 defesas num jogo contra o Siderúrgica, em 1944. Mas ele tornou-se muito mais do que isso. Foi um ídolo de jornada dupla quando, do velho presidente Mário Grosso, ganhou o contrato: “450 cruzeiros para jogar e 350 para ser pedreiro”.
 
Geraldo II fez parte do grupo de jogadores que construíram, com as próprias mãos, as novas instalações do velho estadinho do Barro Preto em 1945. 

Pouco tempo depois, quando a bola estava no ataque, longe de sua meta, o arqueiro marejava os olhos. Olhando para as arquibancadas, que ele mesmo construiu. Só despertava de seu orgulho aos gritos e palmas dos torcedores. Era mais um gol do Cruzeiro. Corria ao meio do campo e abraçava Bengala, o então goleador e companheiro na feitura do estádio JK. 

Geraldo II foi campeão, bi, tri, Palestra e Cruzeiro, mas chegou o dia em que os calos lhe tiraram a agilidade das mãos. As pernas arquearam e o cansaço de uma vida de labuta lhe pesou os ombros. Restou-lhe a arquibancada, da qual conhecia cada pedaço de madeira e cimento. Sabia quantas marteladas ficaram cada mísero prego. De goleiro foi a torcedor. Morreu ainda pedreiro aos 89 anos.

No Barro Preto, o tempo carcomeu a madeira, o gramado e levou as traves. Mas para o bem de nossa memória, preservou o suor de Geraldo II e daquele grupo de jogadores/operários. Se os muros ainda não ganharam um pintura de seu rosto e de suas mãos, o terreno do velho estadinho do Cruzeiro/Palestra e dos Geraldos está lá para toda criança cruzeirense lembrar do ensinamento do meu velho pai Zé Paulo: dar valor ao próprio trabalho. 

Ali não se comercializa roupa importada, sapatênis ou qualquer item de um shopping de grife. Não se transforma trave em gôndola, bilheteria em caixa de hipermercado. Lá, no Barro Preto, está um pedaço de terra sagrada para palestrinos, cruzeirenses e toda gente que não admite vender sua história.

Geraldo. Pedreiro. Goleiro. Cruzeiro.

Arquivo/Cruzeiro
Hoje também é dia de trabalho. Vencer o Vasco pela Libertadores Raiz.

Raiz como Geraldo. Que o Cruzeiro entre em campo lembrando dele e novamente se torne um time de pedreiros. 

Siga-me no Twitter @gustavonolascoB

Tags: gustavo nolasco cruzeiroec palestra geraldo história libertadores2018