Gustavo Nolasco
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DA ARQUIBANCADA

O último gol do Cruzeiro no Bento

Pelo celular, envolto na capinha azul com cinco estrelas, Mônica recebeu o pior telefonema de sua vida

postado em 07/11/2018 08:00 / atualizado em 06/11/2018 21:00

Eduardo Valente /Light Press/Cruzeiro FLORIANOPOLIS
Era 31 de outubro de 2015. O Cruzeiro confirmava sua história de gigante. Espantava a possibilidade de se igualar aos medianos, aqueles detentores de passagens pela tal da Série B (#ElaJamais). Porém, ao início da partida pela 33a rodada, naquela tarde-noite, o estádio da Ressacada, em Florianópolis, era um mar. E o dilúvio enviado dos céus parecia que não impediria mais um vexame: Rômulo fazia 1 a 0 para o Avaí.

O jogo caminhava para o fim quando, para o desespero dos cruzeirenses ali no Bar da Sandra, o recém-chegado Mano Menezes chama, no banco, Leandro Damião, que há quatro meses não marcava um gol. Todos deram uma talagada na pinga e bufaram a queimação: se ele não faz um golzinho há tanto tempo, não seria ali, debaixo de uma piscina olímpica, que desencantaria... 

Não demorou nem a primeira mordida na coxinha vinda da cozinha à mesa. Pimba! Depois de um cruzamento de William, Damião desencantou. 1 a 1. Adeus, rebaixamento!

O apito final trouxe alívio. Longe do tempo ruim de Florianópolis, ali no distrito de Bento Rodrigues, paraíso encantado da minha Mariana, o dia caía em uma noite de estrelas. O vento soprava os galhos das árvores em frente à igreja de São Bento, lembrando o bailado dos bandeirões na Toca da Raposa 3.

Pela TV, os jogadores se abraçavam no meio do gramado. Lá fora, ao fundo, o correr manso e cristalino dos rios Ouro Fino e Gregório terminava também num entrelaçar de braços, formando a corrente do rio Gualaxo.

No distrito azul de Bento Rodrigues, ninguém ainda imaginava que aquele empate sem graça contra o Avaí entraria para suas memórias. Mas, afinal, por que guardariam um resultado irrisório em meio a tantas felicidades esplendorosas?

Enquanto os melhores (piores) momentos daquele jogo ainda ressoavam na TV, em meio às cigarras, Mara, Mauro, Marinalda, Branquinho, Marquinhos e Antônio percorriam o rumo de suas casas. Lembrando não do empate, mas sim das festas azuis dos anos anteriores.

Os dias de Cruzeiro contra o Atlético de Lourdes eram especiais no Bento. Sandra, que carregava o amor pelo azul em seu coração, mas por baixo do avental, permitia uma bandeira de cada clube no estabelecimento. Mas só prometia uma caixa de cerveja de “cortesia da casa” se o seu Cruzeiro vencesse. 

Quando isso acontecia, Marquinhos e Antônio iniciavam o barulho ensurdecedor do foguetório, alegrando a molecada. O pipocar de fogos e gritos de “Zêro” faziam os moradores do Bento esquecer o fantasma de ter sobre suas cabeças as barragens da mineração. 

Antes de chegar em casa, Mara lembrou de quando veio a conquista da Libertadores de 1997. A noite e as poucas ruas do pequeno povoado foram pequenas para a carreata, cavalgada e algazarra. Tudo ao som do hino das páginas heroicas e imortais.

Alguém também lembrou da Tríplice Coroa, em 2003. A beleza dos meios-fios da Praça do Bento sendo pintados, um a um, em branco e azul. Alguns atleticanos, invocados, passaram um bom tempo mudando seus caminhos para não cruzarem aquele reduto celeste.
 
Cinco dias depois daquele empate sofrido com o Avaí, Mônica acordou no seu quarto todo decorado com cores e símbolos do seu Cruzeiro Cabuloso. Arrumou-se. Colocou na bolsa o celular revestido cuidadosamente numa capinha com as cinco estrelas estampadas e deixou Bento Rodrigues para trabalhar em Mariana. 

Pelo mesmo celular, às quatro horas da tarde daquele 5 de novembro de 2015, Mônica recebeu a ligação mais devastadora de sua vida: a barragem de Fundão, pertencente à Samarco/Vale/BHP, havia rompido destruindo por completo Bento Rodrigues e matando gente, bicho, rio, mata e história.
 
O crime da barragem de Mariana transformava aquele Avaí 1 X 1 Cruzeiro, disputado debaixo de um mar de água, no último jogo assistido no Bento Rodrigues antes de ser apenas memória debaixo de um mar de lama.

*

Dedico essa crônica aos 19 mortos no primeiro dia do maior crime socioambiental do país, seus familiares, aos cruzeirenses, atleticanos, a todos os ex-moradores do Bento e aos não-covardes que lutam por justiça. #ParaNãoEsquecer #NãoFoiAcidente

Tulio Santos/EM/D.A Press


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