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Os domingos de Ícaro: mineiro, atleticano e em busca do ouro olímpico

A história do garoto que perdeu boa parte da visão e, agora, é uma das esperanças de pódio do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio

Ícaro Miguel vai em busca da medalha de ouro em Tóquio
foto: Reprodução

Ícaro Miguel vai em busca da medalha de ouro em Tóquio


Era um domingo ensolarado quando a vida do pequeno Ícaro Miguel, de 6 anos, mudou completamente. O garoto pacato brincava na piscina de um clube em Betim, onde nasceu, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Deitado após um dia intenso na água, ele viu a mãe se aproximar com um vidro de água boricada para pingar no olho direito. Mas a dona Margarete confundiu o frasco do produto com o de amônia. As horas seguintes foram de apreensão, já que não havia médicos disponíveis naquela noite. O jeito foi esperar a segunda-feira.

A consulta com especialistas impôs uma nova rotina de cuidados a Ícaro. A mãe, Margarete Soares, e o pai, Horoni Rosa, deixaram a chácara onde viviam para evitar que o garoto tivesse contato com terra e animais, o que poderia lhe causar infecções oculares. Mais do que a mudança de ares, o menino se viu afastado das coisas que mais gostava de fazer e até mesmo da escola (por 60 dias). Não foram tempos fáceis para a família, que já tinha outras duas crianças: Luana Natasha e Brisa. Viviane e Lucas, os sobrinhos do casal, também eram como filhos.

Acuado, Ícaro buscava maneiras de lidar com o drama vivenciado tão cedo. Sempre foi muito tranquilo, contam os familiares e amigos de longa data. Esse padrão talvez tenha sido alterado em dois momentos. Aos 4 anos, ele interrompeu a missa ao ouvir um foguete estourar do lado de fora da igreja. Sem hesitar, subiu no banco e gritou: "Galo!". "Todos começaram a rir, o padre parou a celebração", conta, sorridente, a mãe.

Infância, medalhas e prêmios: a vida do mineiro Ícaro Miguel



A paixão pelo Atlético persiste. Mais velho, conheceu Raiany Fidelis, já nos tatames. A consolidação do amor pela companheira de luta, porém, tinha um pré-requisito. "Quando eu e o Ícaro estávamos nos conhecendo, ele falou: 'Para me namorar tem que ser atleticana'. Aí eu falei: 'Tudo bem, a partir de hoje sou atleticana' (risos)", brinca a agora ex-cruzeirense, que, do Brasil, torce pelo namorado em Tóquio. 

Da capital japonesa, o lutador viralizou após atleticanos descobrirem o time para o qual ele torce. Chegou até a ser personagem de publicações do clube alvinegro nas redes sociais.

A segunda vez que Ícaro contrariou o próprio sossego foi um pouco mais tarde, aos 12. "Todo adolescente tem seus momentos de sapequice", relembra Margarete. "Só teve uma vez em que ele resolveu matar aula e quebrou o braço na pista de skate", completa, aos risos.

A rebeldia causou dor e, mais do que isso, impediu o skatista de praticar, temporariamente, o esporte que realmente gostava: o taekwondo, modalidade que cresceu vendo os pais praticarem. Quando tinha 8 anos, Ícaro - que àquela altura conseguira recuperar 90% da visão do olho após um longo período de tratamento na capital mineira - decidiu pedir à mãe que o matriculasse nas aulas. "Com 10 anos, ele já falava que ele ia ser campeão olímpico. E vai ser", promete Margarete, esperançosa.

Ícaro Miguel é apaixonado pelo Atlético
foto: Reprodução

Ícaro Miguel é apaixonado pelo Atlético


FOCO TOTAL NO OBJETIVO


Nas lutas, Ícaro se transforma e adquire explosão e agilidade. Mas conserva duas características marcantes da personalidade: tranquilidade e concentração. A mescla de qualidades formou um atleta de alto nível, que conseguiu grandes resultados desde os primeiros campeonatos que disputou, ainda em Betim. Mais de uma década e meia depois, aos 26 anos, o caçula da família está em Tóquio para o maior desafio da carreira.

"Eu diria que o Ícaro nasceu preparado. Ele está muito concentrado", relata Raiany Fidelis, que teve resultados expressivos ao longo do ciclo olímpico, mas acabou fora dos Jogos. O foco do mineiro é tão grande que ele prefere não dar entrevistas. Só depois das competições.

Mineiro ganhou a prata no Pan de 2019, em Lima
foto: Reprodução

Mineiro ganhou a prata no Pan de 2019, em Lima


"Esse foco não é de agora, nesta reta final de preparação. A gente esteve isolado um bom tempo por causa da COVID-19. A preparação foi isolada, numa chácara, ninguém saía nem para ir ao mercado. A concentração dele vem de meses, com treino, dieta, focado na Olimpíada", prossegue Raiany.

"Ele é muito tranquilo, me disse nesses dias que está se sentindo como se fosse qualquer outro evento, não uma Olimpíada. Ele não eleva o nome da competição, está se sentindo como se estivesse em um Open. Ele é bem tranquilo em relação a isso. A vontade é só que chegue logo para colocar em prática tudo o que treinou e preparou", completou.

E a preparação até os Jogos Olímpicos não foi nada simples. O impacto dos treinamentos e competições teve sérias reflexões. O olho direito, outrora recuperado, agora tem apenas 10% da capacidade visual. Num esporte em que a noção de espaço e a velocidade de reação são aspectos fundamentais, parecia um desafio impossível. Mais uma vez, Ícaro superou as adversidades.

Durante os treinos, ele começou a tapar o olho com visão plena para que o outro se fortalecesse - o gesto, inclusive, virou símbolo do atleta nas redes sociais. E a estratégia deu certo. A carreira de Ícaro, que atualmente treina em São Caetano, decolou. Nos últimos anos, o mineiro empilhou medalhas e conseguiu um feito inédito para o Brasil: liderar o ranking mundial de taekwondo.

Atualmente, é o quarto colocado, e um dos sérios candidatos a conquistar uma medalha olímpica na categoria até 80kg. "Ele está tranquilo como sempre, certo da vitória, muito concentrado", garante a mãe, para quem o filho já é campeão. 

A estreia no Makuhari Messe Hall será contra o italiano Simone Alessio, hoje, às 22h15 (de Brasília). Que seja mais um domingo histórico na vida de Ícaro Miguel. Agora, 20 anos depois.

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