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MELHOR DO MUNDO

Como Modric e Salah uniram povos divididos para torcer por eles na disputa com CR7

O croata e o egípcio disputam o prêmio de melhor jogador do mundo da Fifa com o português Cristiano Ronaldo

postado em 24/09/2018 10:49 / atualizado em 24/09/2018 15:24

AFP
Luka Modric e Mohamed Salah não podem fazer justiça com as próprias mãos, mas usaram o talento com a bola nos pés para driblar guerra civil, diferenças políticas, étnicas e culturais, intolerância religiosa e fizeram povos divididos se unirem numa só torcida. Croácia e Egito esperam que um dos azarões supere o favorito, Cristiano Ronaldo, e conquiste hoje, às 15h30 (de Brasília), o Fifa The Best — prêmio de melhor jogador do mundo oferecido pela entidade máxima do futebol.

Uma imersão na biografia dos dois candidatos a derrubar CR7 do trono de número 1 do mundo — e a encerrar 10 anos de dinastia do português e do argentino Lionel Messi — sugere que o Fifa The Best deveria ser chamado, ao menos hoje, de Nobel da Paz.

Marcada por uma luta sangrenta pela independência da extinta Iugoslávia, a Croácia uniu-se pelo sonho do título inédito na final da Copa da Rússia. Barril de pólvora, o Egito torceu pelo Liverpool, de Salah, na final da Liga dos Campeões da Europa, e emocionou-se ao testemunhar o herói nacional levar os Faraós de volta ao Mundial depois de 38 anos de vacas magras.

Tetracampeão da Champions League pelo Real Madrid nos últimos cinco anos e vice da Copa de 2018 com a camisa da Croácia, Modric superou traumas para levar a seleção ao momento histórico no futebol. Quando era criança, foi desalojado pela violenta separação da Iugoslávia e obrigado a viver fora do país. Enquanto brincava nas ruas de Zadar, uma cidade portuária, a casa da família era detonada por bombardeios de milícias sérvias. As crianças recebiam ordens para não se afastarem dos abrigos, sob o risco de morrerem em explosões.

O primeiro nome de Modric, Luka, é uma homenagem dos pais ao avô dele, assassinado por rebeldes sérvios pertinho de onde morava, nas encostas da montanha Velebit. A família retornou a Zadar, cidade natal do jogador, e foi morar num abrigo para refugiados, em um ambiente sem luz nem água corrente.

Modric fala pouco sobre a guerra. Em 2008, testemunhou: “O que nós passamos não foi fácil. A guerra nos fez mais fortes. Nós não somos pessoas fáceis de quebrar. E há uma determinação para mostrar isso, que podemos ter sucesso”, afirmou o maestro do Real Madrid e da Croácia. A campanha da seleção uniu o país. Na semifinal, contra a Inglaterra, o jornal Jutarmji publicou editorial com a receita para a vitória: “Sangue, suor, lágrimas e união. Mesmo as nações pequenas podem ficar grandes e famosas se trabalharem juntas”.

Na Rússia, a Croácia entrou para a história como o menor país a disputar uma final de Copa. A seleção tirou a presidente, Kolinda Grabar-Kitatovic, do conforto do palácio dela, em Zagreb, para o Estádio Luzhniki, em Moscou. Lá, Modric consolidou a candidatura a melhor do mundo e fez a chefe de Estado quebrar o protocolo. Ela vestiu a camisa da seleção, chorou e pegou chuva durante a inesquecível premiação dos vice-campeões do planeta.

Fuga em meio à Primavera Árabe

O Egito é um país dividido política e religiosamente. Marcado por guerras civis, um governo autoritário, oposição quase inexistente, ativistas presos e torturados. Em meio ao caos, um homem conseguiu, pelo esporte, juntar os cacos da nação e uni-la para torcer pelo Liverpool na final da Liga dos Campeões da Europa e pelos Faraós na Copa da Rússia.

No chamado Dia de Fúria, um dos episódios da Primavera Árabe, milhares foram às ruas do Egito, em janeiro de 2011, exigir a saída do então presidente Hosni Mubarak. A pressão popular foi forte: derrubou uma ditadura de 30 anos. O perrengue paralisou o Campeonato Egípcio por duas temporadas. Motivo: em dezembro de 2012, mais de 70 pessoas morreram no Estádio Port Said, durante o duelo entre Al Masry e Zamalek, em outro ato da Primavera Árabe. A bola só voltou a rolar em dezembro de 2013.

Durante a paralisação, Mohamed Salah defendia o El Mokawloon, mas logo pulou fora para continuar jogando. Acertou com o Basel, da Suíça; passou pelo Chelsea; defendeu a Roma e virou Faraó no Liverpool. Decisivo na campanha do vice na Champions League, ofuscou os problemas do Egito. Os gols e o carisma de Salah na tevê e nas redes sociais o transformaram num líder. 

Ele também conquistou seu povo com fé, ações sociais e equilíbrio religioso. Doou uma máquina de diálise ao vilarejo em que nasceu, financiou a reforma de um centro esportivo e de uma mesquita, quadriplicou o número de pessoas em busca de ajuda contra as drogas, ao topar ser garoto-propaganda de uma campanha publicitária do governo, e virou símbolo de um islamismo moderado. Batizou a filha de Meca, em homenagem à cidade sagrada.

Salah faz doações frequentes a hospitais, centros de reabilitação, escolas e casas religiosas de Nagrig, onde nasceu. Fundou um instituto de caridade na comunidade de Basyoun para ajudar moradores na extrema pobreza. Recusou uma casa de luxo oferecida por um empresário egípcio, sob alegação de que preferia ver o dinheiro repassado ao povo de Nagrig.

No dia em que o Egito venceu Congo nas Eliminatórias e garantiu vaga na Copa da Rússia, a casa onde mora a família de Salah foi roubada. A polícia prendeu o ladrão, mas Salah pediu para soltá-lo, deu dinheiro a ele e o ajudou a reconstruir a vida.

Herói de si mesmo

Enquanto Modric e Salah representam povos marcados, Cristiano Ronaldo tentará ser o herói de si mesmo pela sexta vez. Empatado com Messi em número de prêmios de melhor do mundo (5 x 5), seria uma barbada, hoje, mas a derrota para Modric na eleição de número 1 da Europa, feita pela Uefa, deixou o português com uma “pulga atrás da orelha”. Os números levantados pelo Correio evidenciam o favoritismo do gajo. Os gols decisivos na fase de mata-mata da Liga dos Campeões, o show à parte na estreia de Portugal contra a Espanha na Copa e os títulos aumentam o peso da candidatura dele.