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OPNIÃO

Coluna de Fred Figueiroa: Fla x Globo: A guerra fria do futebol brasileiro e as consequências

Colunista do Superesportes avalia o cenário após transmissão do time carioca

postado em 04/07/2020 09:38 / atualizado em 03/07/2020 21:06

(Foto: Alexandre Vidal/Flamengo)
O futebol brasileiro está em ebulição, ensaiando uma revolução que ninguém consegue projetar com um mínimo de segurança como terminará. Os bastidores ecoam incertezas que os analistas urgentes das redes sociais empacotam como certezas. Ruídos se transformam em gritos aos quatro ventos aguçando uma multidão que ecoa apenas o que acha que lhe convém. Por paixão clubística ou mesmo política. Sim, tudo segue assustadoramente misturado. Bandeiras e bolhas. Passado, presente e futuro. Verdades, achismos e mentiras. Hoje tudo isso faz parte do jogo que é jogado fora do campo - mas que invariavelmente decide o que acontece dentro das quatro linhas. No capítulo desta semana, a escalada na tensões em torno da disputa pelos direitos de transmissão das partidas. O clube e a rede de televisão mais popular do país estão (quem diria?) em lados opostos. Guerra declarada. Guerra fria. Ação e reação. Ninguém sabe realmente quem está vencendo. Ninguém sabe nem mesmo o que significa vencer. 

A origem da discórdia 

A origem da discórdia está na cota de TV do malfadado Campeonato Carioca. Mais precisamente, R$ 18 milhões. É o valor que a Rede Globo paga para cada um dos “quatro grandes” do Rio de Janeiro. Ao contrário do que acontece atualmente na Série A - onde a divisão dos recursos leva em consideração audiência, relevância nacional e número de assinaturas do pay per view - nos estaduais, ainda prevalecem as castas. E, baseada nos seus próprios interesses de mercado, a Globo destina parcelas iguais ao quarteto. Claro que aos olhos do Flamengo é injusto. Todos sabem que o clube rende muito mais que seus velhos e ultrapassados rivais. Por isso, o rubro-negro resolveu negar a proposta de renovação do contrato. Queria mais dinheiro, a Globo negou. Tinha o controle da situação em mãos. A emissora detém os direitos de transmissão das outras 11 equipes. E, pela lei que rege o futebol nacional, o Flamengo estava refém dos seus adversários e da TV. Porém, atravessando o melhor momento financeiro da sua história, decidiu assumir o prejuízo dos R$ 18 milhões. A verdade é que os dois lados apostaram que, mais cedo ou mais tarde, o outro cederia. 

Conexão Gávea-Brasília 

...Mas ninguém cedeu. E, para tornar a situação ainda mais extrema, faltando apenas duas rodadas para o sim do segundo turno, o campeonato foi paralisado pela pandemia da Covid-19. O prejuízo de R$ 18 milhões assumido pelo Flamengo se multiplicou com três meses sem gerar receita. A conta pesou. Enquanto isso, o presidente da República, Jair Bolsonaro, via sua popularidade ruir com a gestão desastrosa do seu governo diante do novo coronavírus e, ainda, uma série de conflitos políticos, rompimentos e denúncias que reduziram e fragilizaram sua base de apoio. A aproximação com o futebol foi um caminho encontrado para tentar conter sua desconstrução. E Bolsonaro encontrou um poderoso aliado. O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, passou a circular cada vez mais por Brasília. O seu prestígio com a maior torcida do país tornou-se uma valiosa moeda de troca. E a troca se concretizou quando Bolsonaro assinou a MP 984 - mudando radicalmente a lei dos direitos de transmissão no país e dando o poder da negociação dos jogos aos clubes mandantes. O modelo de negócio abre incontáveis possibilidades e deve ser analisado ao máximo pelos clubes. Porém não faz o menor sentido ter sido imposto como medida provisória (que tem validade máxima de 120 dias). Não havia urgência. Aliás, havia. Para o Flamengo. 

Youtube: O ataque do Flamengo 

Com a MP embaixo do braço e uma vitória judicial contra uma liminar da Globo, o Flamengo declarou guerra e transmitiu seu jogo contra o Bangu em seu canal no Youtube. Atingiu o pico de 2,2 milhões de aparelhos conectados - tornando-se a transmissão esportiva mais vista da história na plataforma. Foi, sem dúvida, um estrondoso sucesso. O clube estrategicamente não informou seu faturamento com patrocinadores e doações da torcida (uma ferramenta muito interessante disponibilizada pelo Youtube), deixando espaço para as várias versões circularem. A imprecisão da informação faz parte dessa “guerra fria” - assim como faz parte da linha de comunicação do governo federal. Alinhamento “perfeito” de interesses mais uma vez. O próprio Bolsonaro falou que o Flamengo ganhou improváveis R$ 10 milhões - gerando uma corrente de euforia dos seus seguidores e dos rubro-negros, que agora têm na Globo um inimigo comum. Porém esses R$ 10 milhões são mais de dez vezes o valor apurado pelo Uol (R$ 900 mil). Seja como for é importante entender que as transmissões por streaming não são um “eldorado” do futebol nacional. Longe disso. Não há ainda como competir com a TV aberta. No mesmo horário, a Globo alcançou 15 milhões de pessoas com Botafogo x Portuguesa transmitido para 16 estados. Uma visibilidade quase sete vezes maior. 

Streaming x Pay per view 

E olhe que esse abismo de alcance foi comparado ao jogo do Flamengo, com seu ineditismo e vários outros fatores à favor. Eram quase 110 dias sem ter um jogo transmitido, havia um clima fervoroso de retaliação com a Globo e - fundamentalmente - não havia nenhuma partida acontecendo nos outros estados do país e, na maioria deles, não havia outro jogo sendo transmitido na tv aberta. No dia seguinte, o Vasco teve pico de 460 mil aparelhos conectados na reta final da partida contra o Resende. No primeiro tempo, não chegou em 300 mil. Números mais reais e que devem balizar com mais precisão o cenário para os demais clubes do país. Um cenário ainda de incerteza. De experiência. Mas - para ficar claro onde quero chegar - uma experiência extremamente válida. A transmissão por streaming, hoje, não deve ser comparada com a TV aberta. São dois universos. Porém já é uma realidade colocar na mesa sua viabilidade em relação ao pay per view. Aqui, sim, pode existir uma brecha para aumentar a receita de parte dos clubes. O presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, fez uma explanação precisa do cenário ao revelar que %u2154 do pay per view do Brasil é pirata. Das assinaturas oficiais (em torno de 2 milhões de pessoas), 62% da receita fica com a Globo. Do restante (38%), %u2153 ficam com Flamengo e Corinthians. Ou seja, sobram 25% para dividir com 18 clubes. 

O contra-ataque da Globo 

Ainda resta um capítulo dessa história. A reação da Globo, no dia seguinte ao jogo do Flamengo, caiu como uma bomba na estrutura do futebol do Rio de Janeiro. Por considerar que teve seu direito violado, a emissora rescindiu o contrato de transmissão do Carioca que iria até 2024. Um investimento de R$ 120 milhões anuais. Enquanto dirigentes do Flamengo e seus torcedores celebraram uma aparente vitória, os outros clubes perceberam o buraco que abriu sob seus pés. Fluminense, Vasco e Botafogo, por exemplo, recebem R$ 18 milhões pelo estadual. Dificilmente conseguirão até metade disso sem a Globo - seja com transmissão própria, seja com venda de direitos para outras emissoras. O buraco é muito mais embaixo. O Botafogo - que tem uma dívida muito acima do seu potencial de gerar receita - já recebeu o adiantamento do contrato de 2021 e "penhorou" as cotas do estadual de 22, 23 e 24. Ou seja, veria sua cota do Brasileiro ser dizimada para quitar este saldo negativo. E a situação é ainda pior para os pequenos do estado, que recebem uma cota alta pela transmissão. Volta Redonda e Bangu, por exemplo, ganham cerca de R$ 5 milhões cada pelo Estadual (o mesmo que Sport, Santa Cruz, Náutico, Bahia e Vitória somados). Sem a Globo e caso a MP 984 se torne lei, esses clubes pequenos teriam basicamente dois jogos por ano com algum potencial de venda. E lógico que não chegariam nem perto do que recebem atualmente. 

O efeito dominó 

E do Rio de Janeiro parte o efeito dominó que pode atingir os principais centros de futebol do país. O contra-ataque da Globo, naturalmente, começa pela sua retirada dos estaduais. Sem a emissora estes se tornam quase inviáveis economicamente e, assim, abre espaço para um desejo antigo da emissora e de parte dos clubes: Estender o Campeonato Brasileiro para ter nove meses de duração, começando em março. A Globo entendeu rapidamente o cenário. Economiza o dinheiro dos estaduais, enfraquece essas competições e ganha mais poder de negociação para um campeonato que pode preencher sua grade o ano inteiro. Essa movimentação no tabuleiro deve ter levado parte dos clubes e, principalmente, todas as federações a olharem para a MP 984 com outros olhos. O poder de cada clube passa a ser, basicamente, seu potencial de audiência. Em tese, algo que pode ser positivo para os clubes tradicionais de grandes cidades (caso dos três do Recife) e ao mesmo tempo desastroso para os clubes de menor apelo popular (como Atlético/GO, América/MG, Chapecoense e todos os intermediários e pequenos do eixo Rio-SP). Já para os clubes pequenos do interior do Nordeste nada pode ser muito pior do que já está. Enquanto o Água Santa recebe R$ 6 milhões no Paulista, o Central recebe R$ 120 mil no Pernambucano. Para estes, resta saber o que ficará dos destroços da guerra. Afinal, a tal revolução que alguns esbravejam nunca será realmente uma revolução. Não tem alma, nem olhos, nem o coração necessário para a amplitude de um verdadeiro movimento transformador. Por enquanto é só mais adequação nas camadas que formam o topo da pirâmide.