
Gabriel García Márquez era ainda um foca na redação do El Heraldo de Barranquilla, em 1950, quando um jogador mineiro o fez se apaixonar por futebol. Naquele ano, Heleno de Freitas, já atormentado pela sífilis terciária que lhe corroía os nervos, aventurou-se no futebol colombiano, que havia rompido com a Fifa e fundado uma liga pirata, com salários astronômicos. Para lá migraram ídolos como os argentinos Di Stéfano e Néstor Rossi, mas foi Heleno quem arrebatou o coração de Gabo, que comparou o estilo de jogo do brasileiro a um “autor de romances policiais”, pelo sentido de cálculo, movimentos e desenlaces rápidos e surpreendentes.
Nascido em São João Nepomuceno, na Zona da Mata mineira, Heleno morreu há exatos 60 anos, em 8 de novembro de 1959, depois de quatro anos e 10 meses internado em um hospício em Barbacena. O comportamento impulsivo e irascível lhe renderam o apelido de Gilda – a geniosa personagem de Rita Hayworth –, e encantou gerações, se tornando um dos maiores personagens do futebol brasileiro. Suas façanhas foram louvadas por escritores, de Roberto Drummond (“aquele que aqui na terra foi um deus, que multiplicou gols como se gols fossem peixes”) a Eduardo Galeano (“cara de Rodolfo Valentino e humor de cão raivoso”).
Mas, afinal, o que torna Heleno de Freitas um personagem tão fascinante seis décadas depois de sua morte? “O Heleno transcende o fato de ser um jogador de futebol. Ele é um dos personagens brasileiros mais fascinantes de todos os tempos. Ele escolheu ser jogador de futebol pelo ego de querer ser aplaudido por 40 mil pessoas, mas poderia ser um diplomata, seguir carreira no direito. Ele seria relevante e de sucesso em qualquer área”, conta Marcos Eduardo Neves, autor da biografia Nunca houve um homem como Heleno (2003), que serviu de referência para o filme Heleno (2011), protagonizado por Rodrigo Santoro.
Marcos Eduardo está preparando a terceira edição da biografia, que será disponibilizada no ano que vem, data do centenário de nascimento do jogador. O livro será lançado pelo selo Museu da Pelada, braço editorial dedicado a esportes da recém-criada Approach Editora. “Heleno é uma história atemporal, de jogadores que se perdem por questões seja de drogas, doenças, noitadas...”, conta Marcos.
Glória e drama

Nascido em berço de ouro, filho de um negociante de café e uma professora, Heleno começou a jogar futebol ainda na cidade natal. Mas a morte precoce do pai fez a família mudar-se para o Rio de Janeiro, instalando-se em Copacabana. Nas peladas do Posto 4, sob o comando de Neném Prancha, fez sucesso, até ser levado ao Botafogo, com 15 anos. Estreou no profissional em 1939, levado por João Saldanha, e logo se transformou no maior astro do alvinegro.
Chegou à Seleção Brasileira, mas as noitadas e o comportamento furioso em campo foram minguando seu espaço em campo. O que imprensa e torcedores pensavam ser crise de gênio do jogador – pois era um raro caso de atleta nascido rico em um futebol recém-profissionalizado –, era sintoma do avanço da sífilis, que começava a atingir o sistema nervoso.
PRÉDIO DO HOSPITAL NÃO EXISTE MAIS
Os registros do Estado de Minas feitos no início de 2012, em Barbacena, são os últimos das instalações do prédio onde funcionou a Casa da Saúde São Sebastião, que recebeu Heleno a partir de dezembro de 1954. Ali, no quarto de nº 25, a estrela do Botafogo passou seus últimos anos consumido pela febre que lhe corroía os nervos. A clínica funcionou até 1995, quando deu lugar a um hotel de mesmo nome, arrendado pelo empresário Silvio Pires. Há alguns anos, o prédio com capacidade para 130 pessoas em 80 quartos foi demolido. No lugar, está sendo erguido um prédio de seis andares.

A partir de 1957, a saúde e sanidade de Heleno foram piorando: perdeu peso, ficou sem cabelo e os dentes estavam enfraquecidos. Passou a agir de forma violenta, comer papel e rasgar roupas com os dentes. Na manhã de 8 de novembro de 1959 foi encontrado morto por um enfermeiro. Foi velado e sepultado no cemitério São João Batista, em São João Nepomuceno, que, em 2012, inaugurou uma estátua de 2,30m para homenagear o filho ilustre.
LINHA DO TEMPO

6/1933 Muda-se com a família para o Rio
10/1939 Estreia no profissional do Botafogo
1942 Artilheiro do Carioca pela primeira vez: 34 gols em 32 jogos
17/5/1944 Estreia na Seleção Brasileira marcando um gol na vitória por 4 a 0 sobre o Uruguai
21/12/1946 Forma-se advogado pela Faculdade Nacional de Niterói

30/4/1949 Reserva no Boca e rejeitado pelo Botafogo, assina com o Vasco
18/6/1949 Nasce Luiz Eduardo de Freitas, único filho, do casamento com Ilma Miranda
2/1950 Fora da Copa, vai para o Atlético de Barranquilla-COL, recebido como estrela
4/11/1951 Faz seu único jogo no Maracanã, pelo América-RJ, expulso aos 25min

10/1954 Exame na Casa de Saúde Santa Clara, em BH, constata sífilis em grau avançado
19/12/1954 Internado na Casa de Saúde São Sebastião, em Barbacena
8/11/1959 Encontrado morto em seu quarto, quatro anos, 10 meses e 25 dias depois da internação