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'Susto' e 'medo': como a maternidade é encarada por jogadoras de futebol

Brasil caminha a passos lentos na garantia de direitos de maternidade para atletas, mas demonstra evolução

14/05/2023 06:00 / atualizado em 25/05/2023 01:14
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Pâmela e a filha no CT do Cruzeiro
foto: Reprodução/Rede Globo

Pâmela e a filha no CT do Cruzeiro


As mulheres tiveram uma vitória recente no esporte. A Comissão de Assuntos Sociais (CAS) aprovou neste mês a proposta do senador Romário (PL-RJ) que concede licença-maternidade de 120 dias às atletas profissionais. Essa conquista vem em meio a uma revolução ao redor do mundo, que começa a enxergar a maternidade como um aspecto natural e não como um problema no esporte feminino.

No entanto, o Brasil ainda tem dificuldade de acompanhar o mesmo nível de desenvolvimento. Isso porque se trata de uma questão cultural de desvalorização da mulher,  principalmente no futebol.
 
Pensando nisso, o Superesportes entrevistou especialistas e atletas para explicar o cenário atual  da maternidade no futebol feminino. 
 
O advogado especializado em direito do esporte, Higor Maffei Bellini, tem muitas jogadoras em sua cartela de clientes e afirma que a gravidez ainda é um grande tabu para elas.
 
- Se formos analisar friamente, não era preciso ter um projeto de lei para garantir um direito constitucional. Toda mulher tem direito à licença-maternidade, basta ter a carteira profissional assinada. Por isso, digo que é questão estrutural do esporte mesmo, porque muitas jogadoras, muitas mesmo, são tratadas e contratadas como amadoras. É preciso uma mudança de cima para baixo para que elas tenham seus direitos preservados, e esse assunto deixe de ser um tabu - contou em entrevista ao Superesportes.

Bellini é pesquisador da área desportiva e sua tese de mestrado em direito, pela PUC-SP, abordou “os reflexos da gravidez no contrato de direito de imagem das jogadoras de futebol”. Na pesquisa, ele constatou que os clubes tentam driblar as leis trabalhistas por meio de contratos de direito de imagem. Ou seja, as equipes procuram dar natureza cível a uma relação eminentemente trabalhista com as atletas.

Esse modus operandi do setor é prejudicial para a carreiras das jogadoras que são mães ou que desejam constituir uma família durante os anos de trabalho. 
 

"Joguei até os seis meses de gestação por medo"

 
Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde em 2020, cerca de 380 mil partos no Brasil foram de mães com até 19 anos de idade. Kamilla, atacante do Botafogo e com passagem por grandes clubes, faz parte das estatísticas. 

- Na época, eu tinha bolsa em um colégio militar para jogar futsal. Estava começando a carreira. Justamente por isso ficar grávida não era uma opção. Me deu muito medo, sabe? Pensei em tirar (realizar um aborto), mas por fim resolvi levar adiante e escondi a gestação até os seis meses. Acredita? Joguei pelo time, disputei torneios e tudo mais… Até que não deu mais. Era magrinha e quase não tinha barriga, então fui jogando. Fiz de tudo para continuar - revelou a atacante de 28 anos.

O medo de Kamilla tinha um motivo: preconceito. Afinal de contas, ser gestante seria um problema para a equipe. Quando finalmente tomou coragem de contar sobre a maternidade, decidiu abandonar os estudos e a oportunidade de profissionalização no futebol.  

- Tudo foi duro, me derrubou bastante… Cheguei a ficar deprimida, sabe? Ficar sem jogar bola foi a pior coisa. Mas eu seguia jogando lá no bairro onde eu morava, com minhas amigas… Enfim, bati uma bola na praça até na véspera do meu parto. Aliás, eu quebrei o resguardo (período de puerpério) para jogar na várzea. O pai da minha filha ficava lá com ela assistindo aos treinos, jogos, com ela no colo - disse entre algumas risadas.
 
Kamilla jogando com seus amigas com oito meses de gestação
foto: Arquivo pessoal

Kamilla jogando com seus amigas com oito meses de gestação

 

A oportunidade de dar os primeiros passos no profissional aconteceu graças ao futebol de várzea, alguns anos depois do nascimento de Kamilly. Com o apoio da mãe, Luciana, e da avó, Maria, ela deixou a única filha para ir em busca do sonho.

- Eu saí de casa pra jogar no primeiro time profissional em 2015. Kamilly tinha 4 pra 5 anos, era super pequena. Eu sofri muito, sabe? Ficar longe de um filho é muito doloroso. Mas tudo, absolutamente tudo o que eu faço é por ela. Em alguns clubes precisei esconder que eu era mãe, por medo do que fossem pensar de mim. Mas, hoje, quando olho para trás, entendo que as coisas só aconteceram na minha vida depois que eu ganhei a minha filha - revelou. 
 
 

Cruzeiro: 1º clube no mundo a usar regra da Fifa 


Quando descobriu que estava grávida, Pâmela, do Cruzeiro, levou um susto. A notícia veio durante um período difícil da carreira, a reta final de tratamento de uma grave lesão no joelho, o rompimento do temido LCA (ligamento cruzado anterior)
 

- Estava na parte de fortalecimento, malhando igual uma doida, e aí eu descobri, né? Já estava achando estranho aqueles atrasos, aquela cólica. Eu pensei “meu Deus do céu, não é normal”. Fiz o teste e quando vi que tinha dado positivo… Na hora, eu gelei. Ninguém te prepara para essa notícia, ainda mais sendo atleta. Ninguém fala sobre isso, na verdade. A gente só se permite pensar nisso depois que a carreira termina. Eu tive muito medo, muita insegurança do que iria acontecer no futuro, mas foi melhor do que eu imaginava - contou a jogadora, hoje com 33 anos, ao Superesportes.

Por sorte, as incertezas de Pâmela, geradas pela gravidez, não se concretizaram. Isso porque à frente do Cruzeiro existe uma mulher: Kin Saito, diretora do futebol feminino. A estrutura disponibilizada pela Raposa permite que atletas tenham estabilidade durante todo o período inicial da maternidade. 

- Tive espaço para conversar e recebi um projeto do Cruzeiro para tudo em relação à maternidade. Mas eu tenho certeza que só tive esse espaço para conversar porque a diretora do clube é uma mulher. Ela me explicou a situação, todos os planos que iríamos seguir. Não foi fácil, mas eu confiei que tudo daria certo. Eu recebi respaldo para o meu retorno e o mais importante é que teve muito respeito - disse a atacante. 

Em 2021, a Fifa passou a permitir que um clube registre uma nova atleta fora do período de transferências para substituir uma jogadora que esteja em licença-maternidade. O Cruzeiro foi o primeiro time do mundo a utilizar a regra. A regulamentação permitiu que o clube cruzeirense contratasse Tipa para atuar no lugar de Pâmela. 

- Tudo ficou em segundo plano para mim quando descobri que seria mãe. Passaram diversas coisas pela minha cabeça, de continuar, de parar… Foi tudo muito maluco, e realmente pensei que não fosse dar. Passei um tempo com a minha família no Rio (de Janeiro), e vim para Minas com a ideia de que eu ia encerrar meu contrato e voltar para casa, entendeu? As coisas só deram certo, porque houve muito empenho do lado de lá (do Cruzeiro) - concluiu. 

Países europeus utilizam regra da Fifa por falta de "CLT"


Em 2021, a Fifa determinou algumas regras para impor licença-maternidade de pelo menos 14 semanas, assim como proibir a demissão das profissionais que engravidem. A atitude pareceu radical a princípio, mas teve boa adesão pela maioria dos países-membros, inclusive com um destaque na Europa. 

A Inglaterra foi uma das pioneiras a implementar a regra, inclusive adicionando auxílio para doenças de longo prazo. Os 24 clubes da Super Liga e da segunda divisão entraram em um um acordo histórico selado entre a Associação de Futebol (FA) e a Associação de Futebolistas Profissionais (PFA).

Os especialistas consultados pela reportagem concordam que não há necessidade de adotar o mesmo modelo para o Brasil. Afinal, a licença-maternidade é um direito garantido no país desde 1943 pela CLT (Consolidação das Leis de Trabalho). 

O período de afastamento era de 84 dias e os custos eram pagos pelo empregador. Em 1988, com a reforma da Constituição, o afastamento passou a ser de 120 dias e com todos os valores custeados pela previdência social. 


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