Fred Melo Paiva
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O ATLETICANO VAI AO MARROCOS

Nada a perder

"A proximidade do jogo fez com que o atleticano esquecesse o que leu sobre o Marrocos - que não admite que se grite na rua, se beba em excesso e se mexa com a mulherada"

postado em 18/12/2013 08:40

Fred Melo Paiva /Estado de Minas

O atleticano já se encontra plenamente habituado a Marrakesh, sentindo-se em casa como aquela visita que daqui a pouco estará de cueca e chinelo de dedo, abrindo a geladeira sem nenhuma cerimônia.

A cada hora que passa, mais e mais representantes dessa etnia de guerreiros peregrinos brotam do asfalto da cidade, escoando desde o aeroporto até a região da Medina, tomando as avenidas com as suas camisas listradas e os prédios com as suas bandeiras alvinegras. Não há um único hotel, entre as centenas que aqui existem, em que não tremule uma bandeira do Marrocos e outra do nosso Galo. O atleticano sente tanto orgulho, que já caminha torto pelas ruas, de tanto estufar o lado esquerdo do peito.

A proximidade do jogo de hoje fez com que o atleticano esquecesse tudo que leu sobre o Marrocos – um país que não admite que se grite na rua, que se beba em excesso e que se mexa com a mulherada. Pois já abundam por aqui histórias de porres à altura do campeonato, comprovados em fotografias que a princípio levariam à prisão perpétua, senão à forca. Abundam também as bundas, numa certa Pachá que virou espécie de Salomão, tamanha a concentração de atleticanos dispostos a enfrentar canhões naquele conhecido corpo a corpo.

O mais impressionante, contudo, é a transformação dos ônibus de city tour em trios elétricos onde se canta, a capela, os singelos cânticos da Galoucura. Os caras pagam para ver a cidade, mas não estão minimamente interessados nesse objetivo. Tratam de subir ao andar superior, abrir suas bandeiras e, como Pavarottis que tivessem encarnado o demônio, gritar seus palavrões, suas palavras de ordem e suas odes ao Clube Atlético Mineiro. Aqui embaixo meus olhos se enchem d’água. Lá em cima, quem fica parado toma logo um “tá ligado”.

Numa tentativa, talvez, de enjaular o verdadeiro bando de loucos, criou-se aqui uma área com acesso gratuito, mas controlado, dedicada aos torcedores dos clubes que disputam o Mundial. Funciona como as Fan Fests montadas pela Fifa desde a Copa da Alemanha, em 2006. Em Marrakesh se chama Fun Zone, e é mesmo uma zona. Não precisa dizer que para cada torcedor do Raja ou do Bayern tem 200 atleticanos gritando na cabeça deles.

Um desavisado Joseph Blatter deu uma incerta nessa bagunça na manhã de ontem. Não contava com a disposição da massa, que por pouco não carrega o velho no ombro e joga pra cima. Aos gritos de “Rebaixa o Flu”, o francês tratou de sair à francesa, com medo de a mesa virar e o caldo entornar.

O Marrocos é um país maravilhoso, onde se pode fazer turismo de alto nível, confrontando paisagens e culturas diversas. Mas o atleticano não tá nem aí pra isso. Um deles, vendo Marrakesh do avião, confundiu seus prédios de cor ocre com montes de tijolos à mostra: “Veja que favela arrumadinha”. Um outro recusava-se a passar a noite no deserto, um dos passeios mais incríveis por estas bandas: “Eu não vim aqui pra ficar tirando leite de dromedária”.

Pois é isso mesmo: o atleticano veio aqui pra ser campeão. Veio expurgar suas décadas de espera, exorcizar de novo seus demônios, porque eles não couberam numa Libertadores só. O atleticano veio aqui honrar o nome de Minas no cenário esportivo mundial, esculachado pelo arquirrival em duas oportunidades, quando apanhou dos alemães e, não satisfeito, ofereceu a outra face.

O atleticano em Marrakesh é um cara que sonha acordado. A cada check-in que ele fez em seu périplo pra chegar até aqui, ele se perguntou se aquilo de fato estava acontecendo. Ao olhar esta cidade ocre e amarela, lembrou-se dos Catanhas e Mexericas, dos Paulos Curys e Afonsos Paulinos, da década de 1980, do Elias Kalil, do Telê Santana, do Reinaldo, do José de Assis Aragão. É muita dor acumulada.

O atleticano que chegou vivo até o dia de hoje é um sortudo. Logo mais, quando o juiz apitar o início do jogo contra o Raja Casablanca, ele estará a dois passos do além-paraíso – a 180 minutos da transcendência absoluta, da mágica que pode nos conduzir ao impossível, ao inimaginável. Sabe-se lá o que vai nos acontecer se levantarmos esse caneco.

Quando o juiz apitar o início do jogo, a massa enlouquecida, de Marrakesh a Belo Horizonte, deve levantar as mãos pro céu e agradecer a sorte de estar viva. E lembrar-se, mais do que tudo: daqui pra frente, não há nada a perder. Nada a perder.


AQUI EM MARRAKESH
Honrando o nome de Minas
O viajante que não goste de dar bandeira de estrangeiro, sob pena de ser arrochado do táxi ao copo d’água, tá enrolado aqui. O marroquino já aprendeu: vê a camisa listrada e já manda um “Gaaaalo”. Não conta é com a desconfiança do mineiro e sua incrível sapiência na arte de se fazer de bobo e sumir na poeira. Quer ver um atleticano comendo hambúrguer em Marrakesh, escale um local para lhe puxar pelo braço oferecendo tagine ou cuscuz. Se tem de pagar para tirar foto dos encantadores de cobras da Medina, a gente não olha nem a olho nu.

Obrigado à Irmandade
Cheguei crente de que estava tudo certo com minha credencial Fifa. Não estava – tinha sido recusada, e ao recusado não se remete sequer um e-mail. Temi pelo maior mico já vivido por este macaco velho. Mas imagine se a Irmandade Atleticana deixaria um devoto na mão! O senhor Guilherme Monken, sem nunca ter me visto, lido ou ouvido falar, me cedeu dois ingressos do melhor setor: “Me dê seu telefone, acertamos depois do Natal”. Obrigado, amigo, pela confiança. Eh, Galo...

Pra não dizer que não falei da Flor
Tribunais só existem para fazer a justa interpretação da lei. Para analisá-la friamente, podem fechar as portas. O torcedor que se conforma com a nova virada de mesa do Flu, sob o argumento de que “se cumpriu a lei”, deve concordar também com a cadeia para aquele que “furta” uma batatinha frita na fila do self-service. Ou com cinco anos em regime fechado de um manifestante que levava água sanitária e pinho sol, pretendendo fazer desses perigosos elementos um coquetel molotov.

Pra não dizer 2
O Vasco tentou reverter a queda no tapetão. Seu patrocinador, vendo seu filme já suficientemente queimado na barbárie de Joinville, pulou fora. Já o do Flu ficou na moita vendo uma das maiores canalhices da história recente do futebol. Endossou a virada de mesa (ou se omitiu, vá lá), visto que é, na prática, a gestora do clube. Se age assim em caso de repercussão internacional, imagine na hora em que só um tratamento complexo (e caro) for capaz de salvar sua vida!

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