Fred Melo Paiva
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DA ARQUIBANCADA

O Zé Luís, meu pai e o Claudionor

Cláudio é corintiano. Mas tão logo percebeu minha atleticanidade, tratou de se manter para sempre mais bem informado que eu a respeito de Atlético

postado em 02/06/2018 12:00

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Alguns anos depois de apoiar o golpe de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo rompeu com o regime militar. Nessa ocasião, censores da ditadura mantinham assentos nas redações, e nada era publicado sem passar pelo crivo dessas pessoas. Como forma de protesto, o Estadão passou a imprimir receitas culinárias no lugar das reportagens censuradas, mesmo aquelas que eram matérias de capa.

Depois de duas amargas derrotas, meu desejo era repetir o decrépito matutino, publicando neste nobre espaço minhas imbatíveis receitas de omelete, miojo, ovo frito e banana amassada, as únicas de que sou capaz. Poderia sugerir o vinho para harmonizar, mas tudo que sei sobre isso é distinguir o branco do tinto e olhe lá.

Assim é minha relação com a derrota injusta: não me venha falar de Atlético, pelo amor de Deus. Às vezes desconfio que só moro em São Paulo há 22 anos porque, no fundo, eu fugi do Zé Luís, o zelador do prédio dos meus pais. Era um senhor muito afável, que eu conhecia desde a infância. Um amigo com quem eu tinha verdadeira amizade, embora jamais tenha tratado com ele a respeito de outro tema que não fosse o Atlético.

“Oi Fred, e o Galo?”. Eu: “Pois é, e o Galo?”. Ele: “É, o Galo...”. Eu: “É... Galo é Galo, né”. Ele: “É, Fred, Galo é Galo...”. A amizade entre mim e o Zé Luís era tecida por esses grunhidos de Galo, entremeados por rápidas avaliações da conjuntura do time e uma sempre altiva esperança em dias melhores.

O problema eram os dias piores. Eu não queria falar de Atlético depois da derrota injusta, mas ao estacionar o carro na garagem o Zé Luís surgia como aquele último pedágio que se tem de pagar. Último não, penúltimo. Porque havia ainda o meu pai. Tão logo a porta se abria, vinha ele, atleticano de meia-tigela, falar mal do Atlético. Aí não, mano! O Atlético é igual nossa mãe: só a gente pode falar mal dela. “Ah, não tem jeito, o Atlético é sempre isso, o Atlético não vai ganhar nunca.” Pra domar meus instintos de Suzane Richthofen, fechava-me no quarto, resignado e mudo.

Certeza que vim morar em São Paulo pra fugir do Zé Luís e do meu pai nesses dias de derrotas injustas. Poderia recomendar a todos que fizessem o mesmo, mas nada está garantido. Em frente à minha casa, na Vila Mariana, residem Claudionor e Julieta, que, decididos a dar um upgrade em seus nomes, educadamente me pediram para chamá-los de Cláudio e Júlia. Cláudio é corintiano. Mas tão logo percebeu minha atleticanidade, tratou de se manter para sempre mais bem informado que eu a respeito de Atlético.

Da minha parte não houve qualquer reciprocidade: faço questão de não saber nada sobre o Corinthians. Dessa forma, o assunto entre nós dois consolidou-se obrigatoriamente na resenha sobre o Galo, o que nos fez bons e afetuosos amigos. Antes de ser Cláudio, Claudionor é o Zé Luís, faltando-lhe apenas a boina. “E o Galo?”, ele me perguntou domingo passado, quando saía pra levar o Fidel Castro pra fazer cocô. “Pois é, e o Galo, né...”, murmurei, abatido pela derrota injusta para o Flamengo e pelo azar de ter me deixado avistar pelo atento Claudionor. Ele: “É, vacilou. Pode mandar embora aquele beque, não presta, devia ter feito a falta no meio-campo”. Assenti com a cabeça enquanto recolhia a merda do Fidel com uma sacolinha de supermercado.

Na quinta-feira, aproveitando a onda de frio, saí disfarçado com gorro, cachecol e óculos escuros. Mas Fidel Castro acabou me entregando ao paredón, e lá veio o Claudionor, sempre muito cordial: “Que vacilo, hein? Virou o jogo, não é possível tomar dois gols daquele jeito... Sport, Paraná, Ceará, se você perde pra esses times, você perdeu o campeonato. E agora, sem o Otero (foto)...? Que vacilo emprestar o Otero... Vai ficar muito difícil pra vocês agora...”.

Minha casa está à venda. 150 metros, três quartos, um lavabo, um banheiro, uma suíte, o Claudionor. Em caso de interesse, mande um e-mail pro jornal.

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