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O que explica o futebol ser um dos esportes mais populares entre mulheres nos EUA

Se na maioria dos países o futebol ainda é considerado por muitos um reduto masculino, nos Estados Unidos é diferente. O futebol sempre foi visto mais como um esporte feminino

28/03/2024 07:18 / atualizado em 28/03/2024 07:33
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foto: Getty Images

No esporte mais popular do mundo, os Estados Unidos ocupam uma posição curiosa.

Enquanto o futebol masculino do país nunca chegou ao topo e nem consegue gerar tanta empolgação quanto modalidades como o futebol americano, o beisebol ou o basquete, sua seleção feminina é uma potência que há décadas domina o ranking mundial.

Se na maioria dos países o futebol ainda é considerado por muitos um reduto masculino, nos Estados Unidos é diferente.

O futebol sempre foi visto mais como um esporte feminino e é um dos mais populares entre as mulheres no país, ao lado de atletismo, vôlei e basquete.

"O futebol não se encaixa necessariamente no tipo americano de hipermasculinidade, diferentemente do que ocorre no resto do mundo", diz à BBC News Brasil a especialista em futebol Eileen Narcotta-Welp, professora de Ciência do Esporte na Universidade de Wisconsin, em La Crosse.

Ela ressalta que, nos Estados Unidos, são esportes como o futebol americano que representam essa masculinidade. "Isso deixou uma abertura para que as mulheres pudessem jogar futebol, porque era considerado menos masculino", salienta.

Mas a popularidade do futebol feminino no país, e a dominância de sua seleção no cenário mundial, não ocorreram por acaso, e são fruto de uma série de fatores históricos, culturais e políticos, entre eles a luta por igualdade de gênero.

No início da década de 1970, quando países como o Brasil ainda proibiam a prática do futebol feminino, os Estados Unidos adotaram uma lei federal que ficou conhecida como Title IX (Título IX). Essa lei, sancionada pelo então presidente Richard Nixon em 1972, proibia "discriminação com base em sexo" na educação.

O foco original não era especificamente o esporte, e a lei englobava qualquer programa ou atividade de educação que recebesse financiamento federal. O objetivo era impedir que meninas e mulheres sofressem discriminação em instituições de ensino e garantir que tivessem igualdade de oportunidades.

Mas logo o impacto começou a ser sentido nos esportes e, especificamente, no futebol feminino. Para cumprir a lei, escolas e universidades foram obrigadas a reduzir as discrepâncias vigentes na época e a garantir que meninas e mulheres tivessem o mesmo tipo de acesso à prática de esportes oferecido a estudantes do sexo masculino.

Nesse contexto, o futebol despontou como uma maneira de se adaptar às mudanças. O grande número de atletas nos times, com 11 jogadores, além dos reservas, facilitava a inclusão de mais meninas e mulheres.

Além disso, a prática exigia apenas um campo, uma bola e balizas, o que representava uma opção de baixo custo para as instituições de ensino.

"Para os diretores esportivos, fazia muito sentido, tanto em termos de números quanto de recursos", afirma Narcotta-Welp, que durante dez anos atuou como técnica de futebol em times de diferentes universidades americanas.

Seleção dos EUA está classificada para as oitavas de final da Copa do Mundo
foto: Getty Images

Seleção dos EUA está classificada para as oitavas de final da Copa do Mundo

Crescimento

A lei foi inicialmente recebida com resistência por parte das instituições de ensino e da Associação Atlética Universitária Nacional (NCAA, na sigla em inglês), responsável pelos programas de esportes nas universidades do país.

No entanto, nos anos seguintes as escolas acabaram tendo de aceitar e começaram a se adaptar, e a partir da década de 1980 os resultados começaram a ficar mais visíveis.

O incentivo e as oportunidades para que meninas e mulheres praticassem futebol levaram a uma explosão no número de estudantes dedicadas ao esporte em escolas, universidades e clubes do país.

Em 1971, um ano antes de a lei entrar em vigor, apenas 700 alunas do Ensino Médio nos Estados Unidos praticavam futebol, segundo dados da Federação Nacional das Associações Estaduais de Ensino Médio.

Vinte anos depois, em 1991, quando foi realizada a primeira Copa do Mundo de futebol feminino, esse número havia saltado para mais de 121 mil. No ano passado, eram 375 mil.

No nível universitário, a temporada de 1971-1972 tinha apenas 313 jogadoras, segundo dados da NCAA. Dez anos depois, eram 1.855 atletas do sexo feminino em 80 times. Atualmente, são 28 mil jogadoras em mais de mil times.

No caso das universidades, um avanço importante desde a implementação da lei também foi o número equivalente de bolsas de estudos oferecidas a atletas de ambos os sexos, o que abriu caminho para que muitas mulheres pudessem usar seu talento nos esportes e, especificamente, no futebol, para obter acesso ao ensino superior.

"A oportunidade de jogar futebol universitário e ganhar uma bolsa de estudos também foi um empurrão para o futebol feminino, sem falar no sucesso da seleção feminina dos Estados Unidos em campo", ressalta Narcotta-Welp.

Hoje, mais de 50 anos após ter entrado em vigor, a lei beneficiou gerações de atletas e é considerada um exemplo de sucesso no desenvolvimento do esporte feminino. O investimento nesse esporte gerou um enorme banco de talentos, de onde as melhores acabam na seleção americana.

Fãs da seleção feminina de futebol dos EUA durante a Copa do Mundo de 2023
foto: Getty Images

Fãs da seleção feminina de futebol dos EUA durante a Copa do Mundo de 2023

Proibição

Mas a liderança dos Estados Unidos no futebol feminino não é resultado exclusivo da lei. Narcotta-Welp observa que, enquanto a lei afetou apenas instituições de ensino, o futebol vinha ao mesmo tempo conquistando outros locais, como clubes e espaços comunitários.

"Pais e mães viam o futebol como um tipo de esporte não violento, ao contrário do futebol americano", afirma Narcotta-Welp.

"Houve um aumento no número de meninas praticando futebol, porque era considerado um esporte mais igualitário, que todos podiam jogar."

Outros fatores também contribuíram para a dominância americana, inclusive as décadas de negligência ou até mesmo de proibição do esporte em outros países, sob a justificativa de que seria prejudicial à saúde ou à fertilidade das mulheres.

No Brasil, as mulheres foram proibidas de praticar futebol por quase quatro décadas, devido a uma lei que vigorou de 1941 a 1979. O futebol feminino só foi regulamentado no país em 1983.

Na Inglaterra, jogos de futebol feminino foram banidos por meio século, a partir de 1921. A Alemanha proibiu o futebol feminino profissional de 1955 a 1970.

Assim, enquanto nos Estados Unidos meninas tinham oportunidade de jogar e recebiam treinamento desde jovens, proibições nesses e em vários outros países resultavam na falta de incentivo e investimentos no futebol feminino.

Vitórias

A seleção dos Estados Unidos foi formada em meados da década de 1980 e, quando a primeira Copa do Mundo de futebol feminino foi realizada, em 1991, na China, a equipe americana foi a campeã, batendo a Noruega.

Essa vitória, apesar de comemorada pelos torcedores mais atentos, não gerou muita atenção nos Estados Unidos.

Cinco anos depois, os Jogos Olímpicos de 1996, realizados em Atlanta, foram os primeiros a incluir o futebol feminino, e a seleção americana conquistou a medalha de ouro, vencendo a China.

A equipe campeã contava com jogadoras como Mia Hamm, que durante anos foi o retrato do futebol feminino no país.

Mas foi somente na Copa do Mundo de 1999, realizada nos Estados Unidos, que a seleção americana consolidou sua popularidade com o público.

Na partida final, a equipe venceu a China nos pênaltis, diante de um estádio lotado com 90 mil pessoas e mais de 40 milhões de espectadores pela TV.

Segundo Narcotta-Welp, se para quem já acompanhava futebol de perto o ponto de virada ocorreu com a vitória na copa de 1991, para o público leigo o marco foi 1999.

Além de Mia Hamm, a seleção de 1999 transformou em estrelas outras jogadoras, como Brandi Chastain e Michelle Akers.

Muitas atraíram publicidade e o patrocínio de marcas famosas, como Nike, e passaram a ser idolatradas por meninas em todo o país, que sonhavam com uma carreira no futebol.

A equipe dos EUA antes da final do futebol feminino nas Olimpíadas de Sydney, na Austrália, em 28 de setembro de 2000. A Noruega venceu por 3 a 2
foto: Getty Images

A equipe dos EUA antes da final do futebol feminino nas Olimpíadas de Sydney, na Austrália, em 28 de setembro de 2000. A Noruega venceu por 3 a 2

Nos anos seguintes, a equipe americana venceu mais duas copas do mundo, em 2015 e 2019.

O resultado é ainda mais impressionante quando se considera que a copa feminina atual é apenas a nona a ser realizada. Os Estados Unidos venceram metade dos oito campeonatos anteriores.

O futebol feminino do país também levou ouro em outras três olimpíadas (2004, 2008 e 2012), além de várias vitórias em campeonatos diversos.

A liderança da seleção americana como número um do mundo, no topo do ranking da Fifa, contrasta com o desempenho da equipe de futebol masculino, que ocupa a 11ª posição e nunca venceu uma Copa do Mundo.

Mas mesmo com essa superioridade, as mulheres passaram anos sendo pagas bem menos do que os jogadores do sexo masculino e enfrentando outras desigualdades em diversos aspectos, desde a qualidade das acomodações em viagens até condições gerais de jogo.

Foi somente em 2022 que as jogadoras conquistaram igualdade de salários, depois de processarem a Federação de Futebol dos Estados Unidos e obterem um acordo sem precedentes no valor de US$ 24 milhões.

Segundo Narcotta-Welp, apesar do resultado positivo, ainda é incerto o impacto dessa vitória para jogadoras que não estão no topo. "Tenho certeza de que algumas desigualdades irão permanecer", afirma.

Seleção dos EUA com a medalha de ouro da Olimpíada de Londres, em 2012
foto: Getty Images

Seleção dos EUA com a medalha de ouro da Olimpíada de Londres, em 2012

Futuro

A trajetória de mais de três décadas de sucesso no futebol feminino dos Estados Unidos gerou impacto no esporte ao redor do mundo. Jogadoras de vários países buscam treinar e jogar em universidades e clubes americanos.

Uma análise do jornal USA Today calcula que, entre as 32 seleções que participam da atual Copa do Mundo, 27 têm jogadoras com algum tipo de ligação com os Estados Unidos. O jornal cita entre elas a brasileira Marta, que joga no Orlando Pride, da Flórida, e já passou por outros clubes no país.

Recentemente, outros países vêm recuperando o tempo perdido, com maior interesse e investimento no esporte, o que pode representar desafios para os Estados Unidos. No ranking mais recente da Fifa, o país é seguido por Alemanha, Suécia, Inglaterra e França. A seleção brasileira aparece em oitavo lugar.

Narcotta-Welp salienta que, enquanto nos Estados Unidos, o futebol universitário continua sendo o destino natural de atletas que começam a praticar o esporte na escola, países como Alemanha ou França estão identificando talentos mais cedo e colocando essas jogadoras diretamente em ligas profissionais.

"Creio que há atualmente uma tentativa de fazer essa transição (nos Estados Unidos)", diz.

"Acho que vamos começar a ver mais e mais jogadoras pulando a universidade para jogar (diretamente) na liga profissional", aposta.

A professora acredita que o atual momento é de "uma nova ordem mundial" no futebol feminino. Ela prevê que a seleção americana deve continuar entre as principais do mundo, mas adverte que outras equipes estão ficando cada vez melhores.

"Cada partida será mais difícil de vencer", afirma.


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