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Do povo, o Cruzeiro veio. Pelo povo, ele voltou

Ao final da peleja matemática contra o Vasco, meu corpo era pequeno para abarcar a avalanche de sentimentos

22/09/2022 16:35 / atualizado em 22/09/2022 16:53
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Gustavo Nolasco: 'Do povo, o Cruzeiro veio. Pelo povo, ele voltou'
foto: Gustavo Nolasco/arquivo pessoal

Gustavo Nolasco: 'Do povo, o Cruzeiro veio. Pelo povo, ele voltou'


Ontem, eu não chorei. Chegara o tempo certo para o fim dos piores anos de nossas vidas. O Mineirão, esse templo sagrado, nos acolheu para uma cerimônia onde reafirmamos nosso amor inexplicável. Mas ontem, eu não chorei.


Abracei forte meu irmãozinho de alma, Bernardo, e tantas outras pessoas que vieram dividir comigo o quanto as minhas palavras haviam lhes tocado o coração. Isso foi ontem e eu não chorei.

Já era madrugada. Permaneci estático na arquibancada, perplexo com a festa. Dopado por tanto amor emanado por uma multidão azul e estrelada. Lembrei de cada capítulo dos meus 46 anos de Cruzeiro. Desde a primeira vez no estádio, levado pelo meu velho pai, e de todas as vezes que, mesmo longe do campo, tive a paciência alheia pela minha constante ausência por estar me dedicando a fazer pelo Cruzeiro. Mas grato por tudo, ontem, eu não chorei.

Quando o escrete se reuniu no círculo central para a tradicional saudação do acesso, ouvi do rapaz ao meu lado, em prantos: "isso é para o meu avô. Ele morreu. Eram sobre o Cruzeiro as nossas mais lindas conversas." Meus olhos ficaram perto de marejar, mas ontem, eu não chorei. 

Agora, um dia após a catarse azul estrelada, ao rabiscar essas memórias, me veio a clarividência do porquê. Não chorei, pois meus olhos precisavam estar límpidos para decifrar as tantas lágrimas ao meu redor.

O senhor vestido com uma toca celeste me olhou. Movimentou freneticamente os punhos erguidos. Não disse uma palavra sequer. Nenhum delas seria necessária, pois eu vi sua lágrima limpar-lhe do rosto a revolta por passar três anos escutando blogueirinhos e Bilionários do Brasil Miséria tratando a queda do Cruzeiro com o deleite de um escravocrata sádico, de um estuprador frio, de um corrupto sórdido, de um imbecil fascista.

Na escadaria, o rapaz ajoelhado. As palmas das mãos juntas, em posição de súplica. Tinha o rosto quase colado ao chão encharcado. Era impossível ouvir seus sussurros. Não era preciso, pois eu vi sua lágrima arrancar-lhe da face a dor pelo pênalti chutado para fora em 2019 ou das humilhantes derrotas de 2020 e 2021. 

A formosa menina de calças branca cruzou o caminho. Gritava versos desconexos. Entendê-los não faria diferença, pois eu me atentei à sua lágrima a livrar-lhe da vergonha de torcer por times montados com amontoados de refugos.

O pai com o filho "de cavalinho" no pescoço, batucando-lhe a cabeça, alheio ao motivo das festa das outras 60.000 crianças de todas as idades em êxtase. O orgulho por dividir aquele instante com seu rebento provocou-lhe a lágrima, e ela lhe lavou o soluço preso pelos quase dois anos de pandemia sem poder entrar num estádio para estender as mãos e a voz para acudir um Cruzeiro ferido quase de morte. 

A noite foi de milhares de lágrimas a limpar também saudades (ah, Salomé...) e esperas. A multidão chorou a recompensa por sua própria luta.

Há 101 anos, esse povo se juntou e decidiu criar um time para chamar de seu. Agora, após os três piores anos da vida dessa linda criatura vinda das ruas, chamada Cruzeiro/Palestra, esse mesmo povo - pelos seus braços, colos, vozes e lágrimas - a ergue novamente.

Do povo, o Cruzeiro veio. Pelo povo, o Cruzeiro voltou.

E a sua lágrima de ontem lavou o quê? Seja pelo que for, venho aqui para lhe dizer "muito obrigado" por doar sua lágrima para devolver o nosso Cruzeiro ao lugar de onde nunca deveria ter saído.

Dito isso, agora, finalmente, eu me permitirei chorar as minhas.

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