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ENTREVISTA

Rogério Micale: formação de atletas, relação com Neymar, objetivos no profissional e mais

Confira como pensa o técnico campeão olímpico de futebol com a Seleção Brasileira

postado em 09/10/2016 08:00 / atualizado em 08/10/2016 18:22

Janey Costa/EM/D. A Press
Antoninho Fernandes, Zizinho, Jair Picerni, Carlos Alberto Silva, Zagallo, Vanderlei Luxemburgo, Dunga e Mano Menezes. A lista de treinadores que fracassaram na tentativa de levar o Brasil à medalha de ouro no futebol nos Jogos Olímpicos é extensa. Mas coube ao baiano Rogério Micale, de 47 anos, pôr fim ao tabu ao conquistar há 51 dias, no Maracanã, o único título que faltava à Seleção Brasileira. Com passagem de destaque na base do Atlético, ele assumiu o time verde-amarelo de última hora, depois da demissão de Dunga, e cumpriu a missão. “Tivemos muita confiança na preparação, como foi essa, de grande pressão e expectativa. O momento era para estar junto e mostrar cumplicidade. Conseguimos isso”, afirma o comandante, que antes classificou o Brasil à final do último Mundial Sub-20, na Nova Zelândia, e à medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Toronto. Agora, ele traça planos mais ambiciosos. Nesta semana, começou a preparar a equipe que vai buscar o bi nos Jogos de Tóquio, em 2020. São jogadores com menos de 20 anos que vão participar do Sul-Americano, em janeiro, com a expectativa de que possam atuar no Japão. Na entrevista ao Estado de Minas, Micale faz críticas à formação de atletas no país, fala da relação com Neymar e sobre seus objetivos de assumir futuramente uma equipe profissional.

Você assumiu a Seleção Olímpica às pressas, formou um time em 15 dias e ganhou o ouro depois de início ruim no torneio. Qual é o grande legado que você deixa para Tite e para o futebol brasileiro?

O maior legado é mostrar que temos um futebol competitivo, sensível e que busca jogar bem e ganhar as competições. Procurei desenvolver um trabalho em cima das características dos jogadores, da qualidade que eles têm, que é acima da média de outros países. Mas o nosso futebol precisava de um pouco mais de organização tática para que as individualidades pudessem sobressair. Nós treinamos 12 modelos de jogo durante os treinos. Iniciamos com um e depois mudamos. Vencemos a competição com a nossa cara.

Depois dos Jogos Olímpicos, qual é o próximo passo?

Agora vou trabalhar com a equipe Sub-20, da geração de 1997, que vai disputar os Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio. Tendo um trabalho de destaque agora, ele vai se consolidar no Japão. Vamos iniciar o processo escolhendo e preparando os atletas, pois temos quatro competições importantes, como o Sul-Americano, no Equador, e o Mundial, na Coreia do Sul. Depois disso, começamos as competições com a Seleção Olímpica, dando sequência a essa trajetória.

A Seleção recebeu críticas nos empates contra África do Sul e Iraque, na primeira fase, e depois cresceu. Qual tom de discurso você usou na recuperação emocional dos atletas?

Nas nossas conversas, eu falava que estávamos bem e que as coisas não seriam fáceis, porque a pressão era grande devido a tudo o que ocorreu no passado e o momento político não era bom. Mas a equipe se soltou e continuamos firmes na busca pelo objetivo. Os resultados nesses dois jogos não vieram, mas os números diziam que não tínhamos ido tão mal. Não marcamos gol, mas era só uma questão de quebrar esse jejum para as coisas funcionarem de fato. Estávamos vivos na competição e uma vitória nos levava à liderança.

Qual é sua metodologia de trabalho com atletas jovens de modo a aliviar a pressão em competições importantes?

A gente conversa muito, passa o máximo de tranquilidade para os jogadores, transmite segurança em termos de plataforma e modelos de jogo e demonstra que confia plenamente no trabalho deles para buscar algo que não tinha ocorrido, além trabalhar o histórico em competições nacionais e internacionais. Tivemos muita confiança na preparação, como foi essa, de grande pressão e expectativa. O momento era para estar junto e mostrar cumplicidade e passar muita confiança.

Vanderlei Almeida
Você disse certa vez que um jogador só se torna maduro aos 28 anos. Acredita que o Neymar atingiu um grau de maturidade satisfatório para a idade dele?

A plenitude da formação do atleta é quando ele atinge essa idade. O Neymar é um cara acima da média por ser tão jovem e demonstrar muita coisa. E ele ainda vai jogar muito e tem muito a crescer. Não tem como antecipar no tempo, não tem como ser maduro aos 24 anos, porque vai cometer falhas. É normal. Ele tem maturidade para ser titular da Seleção, joga num clube como o Barcelona, é um jogador que sempre surpreende e está à frente do seu tempo. Mas, com o passar dos anos, a expectativa é de que ele esteja ainda mais.

Em que ele precisa evoluir para ser o melhor do mundo?

Ele pode melhorar é nas decisões em campo, atitudes... As pessoas cobram muito dele na postura, principalmente criticam quando enfrenta adversários que são duros. Eu convivi com o Neymar durante 35 dias e então é difícil fazer uma avaliação cirúrgica daquilo que ele precisa para evoluir. Todos nós precisamos evoluir. À medida que o tempo vai passando, quando ele for atuando pelo Barcelona, a tendência é melhorar.

Qual foi a importância do trabalho a longo prazo no Atlético na sua carreira que culminou nessa conquista?

O Atlético foi uma escola para que eu pudesse colher os frutos na Seleção. O clube ficou como minha casa. Foi um trabalho bacana que rendeu frutos como o Bernard, o Jemerson, o Uílson, o Eduardo, o Lucas Cândido e o Carlos, além de outros que estão emprestados no Brasil, como Wesley (do Ceará), Henrique (do Paraná), o Giovanni Augusto (Corinthians), Renan Ribeiro (São Paulo). São muitos que saíram dessa safra e que possibilitou ao Atlético hoje ser um clube grande e de referência, que ganhou títulos de expressão e está na Libertadores por vários anos seguidos. A minha carreira na Seleção está inserida nesse contexto do Atlético, trazendo experiência. Foi um trabalho muito bem-feito, tanto que a Seleção me convidou para dar sequência ao projeto. Graças ao Atlético, pude conquistar essa medalha e chegar outra vez à final do Mundial Sub-20.

Como está a base dos clubes mineiros atualmente? Vê alguém com potencial para se destacar?

Sempre tenho convocado jogadores de Minas. Acompanho muito, até porque são três clubes que fornecem atletas. No torneio Sub-20, agora em outubro, vamos levar dois do Atlético (Cleiton e Daniel Penha), do Cruzeiro são três nomes (Victor Alexander, Murilo e Vander) e do América, tinha o Matheusinho, que não foi liberado por estar sendo importante para a equipe. O trabalho de Minas é de excelência, com estrutura boa, com profissionais capacitados envolvidos que dão suporte para o desenvolvimento do profissional. É um celeiro de craques do futebol brasileiro.

Os jogadores brasileiros vão cada vez mais cedo para a Europa e se adaptam ao estilo de jogo de lá. Como trabalhá-los para não perder características primordiais do futebol brasileiro, como o drible e a criatividade?

É difícil. Quando o jogador vai para a Europa, ele tem de se adaptar à cultura local e ao treinador, pois cada um tem sua característica. E se ele começa a limitar as ações no campo, certamente o jogador vai perder essas características, como partir para cima, dar o drible. Muitos técnicos não utilizam disso e querem atletas automatizados, com virtudes de jogo que ele entende. E nós acabamos perdendo. Um jogador chega e vai ter entendimento bom no aspecto técnico, sabe ocupar os espaços e se posicionar, mas não é estimulado na criatividade. Não tem o que fazer. Dentro do tempo curto do ambiente de seleção, é preciso dizer ao atleta que ele pode fazer isso. Mas é lógico que se ele não vivencia no dia a dia, terá dificuldade de realizar quando for solicitado. A Europa tem a vantagem de oferecer jogadores com entendimento nos aspectos táticos, mas poda muito a característica do jogador brasileiro.

Odd Andersen/AFP
Você teve um mês para trabalhar o grupo. Qual é o segredo de um sólido trabalho?

Quando eu assumi a Seleção, não tive tempo de escolher os atletas. Mas não tem como usar isso como desculpa. É uma realidade. É desta forma que temos de nos adaptar para passar os conceitos. Nos treinos, o time não pode perder tempo com nada que não seja modelo de jogo. Procuramos fazer da forma que eles entendessem da melhor maneira. Foi assim no Mundial-20, no ano passado, em que terminamos como vice-campeões, e nos Jogos Pan-Americanos de Toronto. Em ambas, não escolhi os jogadores. Mas deu tudo certo.

Você tem trabalhos de destaque na base. O que te falta para assumir um time profissional?

Dirigir um time principal é algo muito próximo, mas eu não vou assumir só por assumir, só para dizer que estou trabalhando num time profissional. Um clube tem que me dar um projeto de trabalho, algo que realmente faça valer a pena eu sair da Seleção, que eu possa conversar com alguém que tenha perspectiva de realizar um trabalho consistente e que não tenha mudanças, porque, às vezes, pode ter duas partidas em que as coisas não ocorram do jeito esperado. Ainda não chegou este projeto na minha mão. As propostas que tive não me trouxeram essa segurança. Fora do país existem conversas acontecendo e, quem sabe, no futuro possa assumir um clube. Mas a princípio continuo trabalhando na CBF.

Como você tem atuado em conjunto com o Tite?

Nós trabalhamos juntos dentro de um departamento. Já tivemos uma reunião técnica, com discussão sobre formas de jogar. Nos encontramos periodicamente para discutir sobre partidas, jogadores... Convivemos dentro de uma seleção normal que busca se alinhar a todo momento para que possamos pensar da mesma forma – é lógico que cada um da sua forma –, procurando discutir conceitos parecidos

Ficou de bom tamanho o aproveitamento dos campeões olímpicos pelo Tite?

O time olímpico está numa situação e a seleção principal em outra. O leque da principal é bem maior e existem jogadores mais experientes, velhos e rodados, que nesse momento vão dar o retorno melhor do que aqueles usados nos Jogos Olímpicos. Em algum momento, eles vão ser lembrados. É um processo natural. Na primeira vez com o Tite, foram sete. Desta vez foram menos. O Tite está atento para chamar os que estão em melhor momento.

Na seleção campeã, o Felipe Anderson começou como titular, mas depois perdeu espaço para o Luan, que deslanchou. Por que a base dos clubes não revela os camisas 10 como antigamente?

O mundo mudou nesse aspecto. São poucos os camisas 10 no mundo com essas características. Não é só no Brasil. Em alguns momentos de nossa história trabalhamos com os armadores, dois atacantes na frente, com três zagueiros e agora esse processo de produção vai ter falta de demanda desses jogadores mais criativos. Vivemos um período de entressafra. O futebol brasileiro voltou a produzir jogadores que atuam pelos lados, os antigos pontas. E o armador de ligação vem aparecendo de outro jeito, mais dinâmico, que chega para fazer o gol. Está vindo uma nova safra por aí, mas que ainda é deficitária. Perde-se um jogador de talento e estamos mal-acostumados. Tivemos Pelé, Zico, Rivellino e outros em nosso ciclo. Agora há outros que buscam espaço, como o Oscar e o Ganso. É preciso esperar que surjam jogadores, não com o mesmo estilo de antes, mas que possam ser úteis para o nosso futebol.

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
A preparação na base prioriza mais os resultados do que a formação de atletas?

Creio que 80% dos clubes priorizam resultado. Eles têm a competição como ponto final no processo. O time só será bom se for campeão. Pode ter uma equipe vencedora, maturada, com movimento tático já feito, mas que o jogador não tem mais nada a oferecer, pois já está no limite. Em contrapartida, há outros mais tardios, que não darão o resultado imediato, mas lá na frente vão dar bons frutos. Então, você tem de estar amparado pela diretoria para que ela possa entender esse processo e a maioria não entende, porque o resultado é o mais importante, até mesmo numa categoria sub-15. Os observadores tendem a buscar jogadores mais fortes e maduros, porque eles vão levar vantagem numa disputa e consequentemente vão ganhar uma competição. E, consequentemente, vão manter o emprego. E, muitas vezes, não se entende por que um clube não revela mesmo ganhando um torneio. E os que não evoluem são mandados embora, pois não há paciência para esperar o amadurecimento.

O Bernard é um exemplo de que é necessário paciência na formação...

Exatamente. Ele teve muita dificuldade em sua formação, porque era pequeno e baixinho. Mas foi a maior venda de Minas Gerais (R$ 72 milhões na época). E é preciso ter tranquilidade e, se tiver qualidade, é preciso paciência para desenvolver tudo o que todo mundo quer. Nós queremos que ele jogue bola, mesmo se for baixinho e magrinho. No tempo certo, ele vai dar ao retorno ao clube e à Seleção. É importante ter conhecimento para fazer a coisa certa.

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