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O último gol do craque Milton Nascimento no Mineirão

Milton fez com a voz e com as palavras o que Garrincha, Ronaldo, Zico, Reinaldo, Tostão, e tantos outros fizeram com os pés

Bob Faria, colunista do Superesportes, traz uma relação entre Milton Nascimento e o futebol
foto: Bob Faria/Colunista do Superesportes

Bob Faria, colunista do Superesportes, traz uma relação entre Milton Nascimento e o futebol

Quero falar de uma coisa. Pode estar dentro do peito, ou caminha pelo ar... Quem sabe? Mas preciso falar porque me faz pensar, e tudo que me faz pensar de alguma forma me leva para um lugar distante, longe dos espinhos e pontas de faca que esmurramos todos os dias.

Então, diante de mais de 50 mil pares de olhos marejados e ouvidos encantados, num estádio acostumado a abrigar glórias e tragédias, uma das maiores estrelas que a música mundial já produziu simplesmente diz intrinsecamente: "Cansei. Já chega. Já fiz o que tinha que fazer".

Milton Nascimento, ou o Bituca para os íntimos, cantou num show ao vivo, teoricamente pela última vez. Como numa última celebração de exposição de alguém que, de fato, com sua arte e sua postura, mudou a percepção de mundo para milhões de pessoas. 

Nunca conversei com ele. Já o vi algumas vezes de perto, em camarins, aviões e até mesmo em restaurantes da vida. Mas nunca troquei uma palavra com ele.

Já estive com dezenas de verdadeiros gênios da música brasileira, de Toquinho a Erasmo Carlos, de Cazuza a Renato Russo, de Caetano a Rita Lee, de Fagner a Zé Ramalho. Mas, com o Milton, eu nunca me atrevi a trocar uma palavra.

Todo mundo (todo mundo.. hahaha. Que pretensão a minha...). Melhor dizendo, quem me conhece sabe que sempre naveguei pelas águas do rock'n roll. Mas isso não significa que eu não tenha apreciado com reverência e respeito o que artistas como Milton, Fernando Brant, Lô e Marilton Borges, Toninho Horta, e claro os filhos mais novos do clube da esquina, o 14 bis, fizeram (e tenho orgulho de dizer que já habitei o mesmo palco de Cláudio Venturini, um dos maiores guitarristas do Brasil e que, como todo gênio, é de uma humildade impressionante).

Estava no Mineirão quando o estádio abrigou alguns dos seus momentos mais icônicos. Quando o Cruzeiro foi campeão da Libertadores, Quando o Atlético também foi o campeão da América.

Vi desfilando pelo gramado craques como Ronaldo, Messi, Rivaldo, Romário, Ronaldinho Gaúcho, Nelinho, Eder, Reinaldo, Alex, Zico, Júnior, Falcão, Cerezo, e centenas de outros. Vi de perto a Alemanha nos ensinar a mais valiosa lição que o futebol brasileiro ouviu desde 1950...

Mas não estava lá quando Milton se despediu dos palcos. Para quem estava, deve ter sido como ver a última partida de Pelé, ou de Garrincha. Como ver saindo de cena um campeão que se forjou na força de seu talento e na benção de sua voz. Certa vez, alguém disse que ouvir o Milton é como ouvir a voz dos anjos.

A música brasileira é pródiga em produzir canções que descrevem nossa paixão pelo futebol. Jorge Bem falou de "Fio Maravilha", Pixinguinha escreveu "Um a Zero", Sérgio Ricardo com "Beto Bom de Bola", Chico Buarque, "o Futebol" e, claro, não pode faltar "Uma partida de futebol" do Skank... E tantas outras.

Mas nenhuma, na minha opinião, traz a singeleza da gênese do amor por esse esporte com mais profundidade que "Bola de meia, bola de Gude", escrita por Milton Nascimento e Fernando Brant.

São versos que nos mandam de volta a um tempo que só existe no coração. Mesmo que você nunca tenha jogado bola. Porque falam de alguém que está realmente guardado dentro do peito e que, toda vez que você fraqueja, vem para te dar a mão. 

Há um menino, há um moleque, na alma de todos nós, que só os artistas e os atletas que têm um dom divino conseguem traduzir, com o corpo ou com a voz.

Milton fez com a voz e com as palavras o que Garrincha, Ronaldo, Zico, Reinaldo, Tostão e tantos outros fizeram com os pés. E como o craque que é, marcou seu último gol num estádio merecidamente lotado. Uma música eternizada por sua qualidade é como um gol de placa. E se fôssemos colocar uma placa para cada golaço do Milton faltaria Mineirão.


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