
A origem da discórdia
A origem da discórdia está na cota de TV do malfadado Campeonato Carioca. Mais precisamente, R$ 18 milhões. É o valor que a Rede Globo paga para cada um dos “quatro grandes” do Rio de Janeiro. Ao contrário do que acontece atualmente na Série A - onde a divisão dos recursos leva em consideração audiência, relevância nacional e número de assinaturas do pay per view - nos estaduais, ainda prevalecem as castas. E, baseada nos seus próprios interesses de mercado, a Globo destina parcelas iguais ao quarteto. Claro que aos olhos do Flamengo é injusto. Todos sabem que o clube rende muito mais que seus velhos e ultrapassados rivais. Por isso, o rubro-negro resolveu negar a proposta de renovação do contrato. Queria mais dinheiro, a Globo negou. Tinha o controle da situação em mãos. A emissora detém os direitos de transmissão das outras 11 equipes. E, pela lei que rege o futebol nacional, o Flamengo estava refém dos seus adversários e da TV. Porém, atravessando o melhor momento financeiro da sua história, decidiu assumir o prejuízo dos R$ 18 milhões. A verdade é que os dois lados apostaram que, mais cedo ou mais tarde, o outro cederia.
Conexão Gávea-Brasília
...Mas ninguém cedeu. E, para tornar a situação ainda mais extrema, faltando apenas duas rodadas para o sim do segundo turno, o campeonato foi paralisado pela pandemia da Covid-19. O prejuízo de R$ 18 milhões assumido pelo Flamengo se multiplicou com três meses sem gerar receita. A conta pesou. Enquanto isso, o presidente da República, Jair Bolsonaro, via sua popularidade ruir com a gestão desastrosa do seu governo diante do novo coronavírus e, ainda, uma série de conflitos políticos, rompimentos e denúncias que reduziram e fragilizaram sua base de apoio. A aproximação com o futebol foi um caminho encontrado para tentar conter sua desconstrução. E Bolsonaro encontrou um poderoso aliado. O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, passou a circular cada vez mais por Brasília. O seu prestígio com a maior torcida do país tornou-se uma valiosa moeda de troca. E a troca se concretizou quando Bolsonaro assinou a MP 984 - mudando radicalmente a lei dos direitos de transmissão no país e dando o poder da negociação dos jogos aos clubes mandantes. O modelo de negócio abre incontáveis possibilidades e deve ser analisado ao máximo pelos clubes. Porém não faz o menor sentido ter sido imposto como medida provisória (que tem validade máxima de 120 dias). Não havia urgência. Aliás, havia. Para o Flamengo.
Youtube: O ataque do Flamengo
Com a MP embaixo do braço e uma vitória judicial contra uma liminar da Globo, o Flamengo declarou guerra e transmitiu seu jogo contra o Bangu em seu canal no Youtube. Atingiu o pico de 2,2 milhões de aparelhos conectados - tornando-se a transmissão esportiva mais vista da história na plataforma. Foi, sem dúvida, um estrondoso sucesso. O clube estrategicamente não informou seu faturamento com patrocinadores e doações da torcida (uma ferramenta muito interessante disponibilizada pelo Youtube), deixando espaço para as várias versões circularem. A imprecisão da informação faz parte dessa “guerra fria” - assim como faz parte da linha de comunicação do governo federal. Alinhamento “perfeito” de interesses mais uma vez. O próprio Bolsonaro falou que o Flamengo ganhou improváveis R$ 10 milhões - gerando uma corrente de euforia dos seus seguidores e dos rubro-negros, que agora têm na Globo um inimigo comum. Porém esses R$ 10 milhões são mais de dez vezes o valor apurado pelo Uol (R$ 900 mil). Seja como for é importante entender que as transmissões por streaming não são um “eldorado” do futebol nacional. Longe disso. Não há ainda como competir com a TV aberta. No mesmo horário, a Globo alcançou 15 milhões de pessoas com Botafogo x Portuguesa transmitido para 16 estados. Uma visibilidade quase sete vezes maior.
Streaming x Pay per view
E olhe que esse abismo de alcance foi comparado ao jogo do Flamengo, com seu ineditismo e vários outros fatores à favor. Eram quase 110 dias sem ter um jogo transmitido, havia um clima fervoroso de retaliação com a Globo e - fundamentalmente - não havia nenhuma partida acontecendo nos outros estados do país e, na maioria deles, não havia outro jogo sendo transmitido na tv aberta. No dia seguinte, o Vasco teve pico de 460 mil aparelhos conectados na reta final da partida contra o Resende. No primeiro tempo, não chegou em 300 mil. Números mais reais e que devem balizar com mais precisão o cenário para os demais clubes do país. Um cenário ainda de incerteza. De experiência. Mas - para ficar claro onde quero chegar - uma experiência extremamente válida. A transmissão por streaming, hoje, não deve ser comparada com a TV aberta. São dois universos. Porém já é uma realidade colocar na mesa sua viabilidade em relação ao pay per view. Aqui, sim, pode existir uma brecha para aumentar a receita de parte dos clubes. O presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, fez uma explanação precisa do cenário ao revelar que %u2154 do pay per view do Brasil é pirata. Das assinaturas oficiais (em torno de 2 milhões de pessoas), 62% da receita fica com a Globo. Do restante (38%), %u2153 ficam com Flamengo e Corinthians. Ou seja, sobram 25% para dividir com 18 clubes.
O contra-ataque da Globo
Ainda resta um capítulo dessa história. A reação da Globo, no dia seguinte ao jogo do Flamengo, caiu como uma bomba na estrutura do futebol do Rio de Janeiro. Por considerar que teve seu direito violado, a emissora rescindiu o contrato de transmissão do Carioca que iria até 2024. Um investimento de R$ 120 milhões anuais. Enquanto dirigentes do Flamengo e seus torcedores celebraram uma aparente vitória, os outros clubes perceberam o buraco que abriu sob seus pés. Fluminense, Vasco e Botafogo, por exemplo, recebem R$ 18 milhões pelo estadual. Dificilmente conseguirão até metade disso sem a Globo - seja com transmissão própria, seja com venda de direitos para outras emissoras. O buraco é muito mais embaixo. O Botafogo - que tem uma dívida muito acima do seu potencial de gerar receita - já recebeu o adiantamento do contrato de 2021 e "penhorou" as cotas do estadual de 22, 23 e 24. Ou seja, veria sua cota do Brasileiro ser dizimada para quitar este saldo negativo. E a situação é ainda pior para os pequenos do estado, que recebem uma cota alta pela transmissão. Volta Redonda e Bangu, por exemplo, ganham cerca de R$ 5 milhões cada pelo Estadual (o mesmo que Sport, Santa Cruz, Náutico, Bahia e Vitória somados). Sem a Globo e caso a MP 984 se torne lei, esses clubes pequenos teriam basicamente dois jogos por ano com algum potencial de venda. E lógico que não chegariam nem perto do que recebem atualmente.
O efeito dominó
E do Rio de Janeiro parte o efeito dominó que pode atingir os principais centros de futebol do país. O contra-ataque da Globo, naturalmente, começa pela sua retirada dos estaduais. Sem a emissora estes se tornam quase inviáveis economicamente e, assim, abre espaço para um desejo antigo da emissora e de parte dos clubes: Estender o Campeonato Brasileiro para ter nove meses de duração, começando em março. A Globo entendeu rapidamente o cenário. Economiza o dinheiro dos estaduais, enfraquece essas competições e ganha mais poder de negociação para um campeonato que pode preencher sua grade o ano inteiro. Essa movimentação no tabuleiro deve ter levado parte dos clubes e, principalmente, todas as federações a olharem para a MP 984 com outros olhos. O poder de cada clube passa a ser, basicamente, seu potencial de audiência. Em tese, algo que pode ser positivo para os clubes tradicionais de grandes cidades (caso dos três do Recife) e ao mesmo tempo desastroso para os clubes de menor apelo popular (como Atlético/GO, América/MG, Chapecoense e todos os intermediários e pequenos do eixo Rio-SP). Já para os clubes pequenos do interior do Nordeste nada pode ser muito pior do que já está. Enquanto o Água Santa recebe R$ 6 milhões no Paulista, o Central recebe R$ 120 mil no Pernambucano. Para estes, resta saber o que ficará dos destroços da guerra. Afinal, a tal revolução que alguns esbravejam nunca será realmente uma revolução. Não tem alma, nem olhos, nem o coração necessário para a amplitude de um verdadeiro movimento transformador. Por enquanto é só mais adequação nas camadas que formam o topo da pirâmide.