Futebol Nacional
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70 ANOS

Histórias e lembranças de um jogo eterno: As memórias de uma testemunha do Maracanazo

Gaúcho Júlio Morosini, hoje com 90 anos, estava na arquibancada do Maracanã e viu o Brasil perder a decisão da Copa de 1950 para o Uruguai

postado em 16/07/2020 08:30 / atualizado em 18/07/2020 15:05

(Foto: Reprodução)
Há exatos 70 anos, o Brasil chegava pela primeira vez a uma final de Copa do Mundo. E o melhor, sendo o país sede da competição. Porém, o cenário que estava preparado para se transformar na consagração inicial do futebol brasileiro entrou para a história por outro motivo. O gol da vitória uruguaia de virada por 2 a 1, marcado pelo atacante Ghiggia (os brasileiros jogavam pelo empate), eternizou e deu nome àquela decisão. E sete décadas depois, o Diario ouviu uma testemunha do Maracanazo. O gaúcho Júlio Luiz Morosini Filho, de 90 anos, que confirmou histórias, revelou outras e saiu em defesa do goleiro Barbosa, apontado como o principal responsável pela derrota.

Naquele dia 16 de julho de 1950, o jovem militar Júlio Morosini, então com 20 anos recém completados, chegou ao Maracanã às oito horas da manhã. Sete antes do horário marcado para a partida. Sabia que teria a companhia de uma multidão. Oficialmente, 173.850 pagaram ingressos para assistirem a decisão, mas o público estimado foi de 200 mil pessoas. Inaugurado um mês antes, o Maracanã ainda se encontrava em obras na final.

“Teve torcedor com ingresso não mão que não conseguiu entrar tamanha era a multidão. Até hoje não sei como achei um lugar pra mim. Um muro caiu e muitos entraram sem pagar. Invadiram o estádio”, recorda Júlio, que assistiu à partida atrás do gol uruguaio. Com isso, pôde ver de perto Friaça abrir o placar logo aos dois minutos do segundo tempo. E de longe, Schiaffino empatar aos 21 e Ghiggia emudecer o Brasil aos 34 minutos.

O jogo contra os uruguaios era o terceiro que Júlio Morosini assistiu naquela Copa. Antes, também se fez presente ao Maracanã para acompanhar a vitória por 2 a 0 sobre a Iugoslávia, ainda na primeira fase, e a goleada aplicada por 6 a 1 na Espanha, já no quadrangular final, na qual foi uma das vozes do coro que cantou a marchinha “Touradas de Madri”. “Os jogadores olhavam espantados para a arquibancada. Os espanhóis não estavam entendendo nada. Cantei muito”, recordou.

No entanto, apesar da campanha arrasadora (o Brasil ainda havia surrado a Suécia por 7 a 1), Júlio ia de encontro ao sentimento geral que já dava como certo o título da seleção. O jovem militar gaúcho sabia que os uruguaios seriam páreo duro. “Tudo era festa antes do jogo. O Rio de Janeiro já tinha um carnaval pronto. Mas eu sabia que era difícil porque o futebol uruguaio e argentino já era um futebol de pegada. E antes do jogo eu disse a um rapaz lá que não seria fácil e ele me chamou de ‘quinta coluna’ (expressão usada à época para se referir a uma pessoa infiltrada para ajudar o inimigo em um período de guerra).”

(Foto: Arquivo/CB/D.A Press)
E quando a bola começou a rolar, o receio de Júlio foi se confirmando. Segundo ele, o lado esquerdo da defesa do Brasil já mostrava falhas. Foi por ali que Schiaffino e, em seguida, Ghiggia marcaram os gols uruguaios. “Quando começou o jogo notei uma fragilidade pelo lado esquerdo da defesa do Brasil e os uruguaios começaram a explorar aquele setor. E comecei a ficar preocupado. Notei que o nosso lateral esquerdo (Bigode) pedia auxílio para os jogadores de meio de campo o ajudarem. Mas ninguém foi”.

Com isso, Júlio Morosini saiu em defesa do goleiro Barbosa. E acredita que a pecha de culpado atribuído por ele carrega um pouco de racismo. Depois de Barbosa, a seleção brasileira só voltou a ter um goleiro negro como titular em uma Copa em 2006, com Dida.

“Ele pagou por isso até morrer (em abril de 2000). Falam que ele devia ter fechado o canto. Mas quem deixou o camarada (Ghigghia) chegar sozinho pelo lado direito? E não foi um chutinho não. Foi um chute muito violento. Acho que essa culpa tem um pouco também de racismo, que antes era pior do que hoje, por ele ser negro”, analisou.

Porém, para a testemunha do Maracanazo, o principal motivo pela derrota não foi a falta de marcação pelo lado esquerdo da defesa. Na opinião de Júlio Morosini o Brasil começou a ser derrotado antes mesmo de entrar em campo. Pela soberba. 

“Já nos achávamos campeões antes de entrar em campo. Os jornais estamparam isso no dia do jogo. O Brasil já entrou em campo campeão, a verdade é essa. Ninguém esperava aquela garra e aquela dedicação do Uruguai”. Afirmação confirmada pela reação da torcida após o gol da virada celeste. 

O famoso “silêncio sepulcral” do Maracanã, de fato existiu segundo seu Júlio. Mas, segundo ele, nos minutos finais a torcida tentou dar um último ânimo à seleção. Em vão. “A torcida de fato ficou em silêncio depois do segundo gol do Uruguai. Um olhava para o outro e ninguém acreditava no que estava acontecendo. Mas nos minutos finais, a torcida voltou a incentivar. Mas infelizmente não deu”, recordou. 

“Quando terminou o jogo fiquei sentado no Maracanã sem acreditar durante muito tempo. Eu e várias pessoas. Outros começaram a dar murro no concreto. Por dois, três meses o Rio de Janeiro ficou parado. A gente pegava um bonde e via as pessoas de cabeça baixa. As pessoas ficaram em casa. Parece até o que estamos vendo hoje com esse coronavírus”, comparou.

Ferida que, sete décadas e cinco títulos mundiais conquistados pela seleção brasileira depois do Maracanazo, está cicatrizada. Mas não apagada. Radicado no Recife desde a década de 1970, o torcedor do Internacional e do Náutico não pensou duas vezes ao comparar o Maracanazo com a goleada por 7 a 1 sofrida pelo Brasil para a Alemanha, na Copa de 2014, e apontar qual revés ainda o faz sofrer.

“Pra mim a derrota do Uruguai foi mais marcante. O 7 a 1 eu nem tomei conhecimento. A gente sentiu, tudo bem, mas a do Uruguai doeu dentro do coração de cada brasileiro. Aquilo marcou demais. E como se tivéssemos levado uma punhalada. Sem saber o motivo”, resumiu o colorado Júlio Morosini. Testemunha da história. 
 
 

Curiosidades da Copa de 1950

População do Brasil
Em 1950, a população do Brasil era de pouco menos de 52 milhões de pessoas (51.944.397), sendo 64% na área rural. Atualmente, de acordo com o último censo, esse número é mais de quatro vezes maior, com 211.782.659 habitantes. Desse total, 84,4% em áreas urbanas.

Final que não foi final
A Copa do Mundo de 1950 foi a única que não teve uma final propriamente dita. Isso porque o jogo entre Brasil e Uruguai, na verdade, foi o último do quadrangular final. Por sorte, as duas seleções eram as únicas com chance de levantar o título, com os donos da casa precisando apenas de um empate. No mesmo dia e horário, a Suécia venceu a Espanha por 3 a 1, em São Paulo, e ficou com o terceiro lugar.

Grupo com duas seleções
Por conta de várias desistências, a primeira Copa no Brasil contou com apenas 13 seleções. Com isso, dois grupos tiveram quatro seleções, outro contou com três e o Grupo 4 teve a participação apenas de Uruguai e Bolívia (Escócia, Turquia e depois França e Portugal desistiram). Com uma goleada por 8 a 0, os uruguaios avançaram para o quadrangular final.

Acidente antes do jogo
Principal palco da Copa, o Maracanã ainda não havia sido totalmente concluído para o Mundial. Assim, na subida do túnel para enfrentar o Brasil pela última rodada da primeira fase, o meia-atacante Mitic, da Iugoslávia, bateu a cabeça em uma barra metálica exposta das obras e sofreu um corte profundo na testa. Com isso, a seleção europeia começou o jogo com apenas dez jogadores em campo. “Quando ele entrou, já estávamos ganhando por 1 a 0”, recorda seu Júlio Morosini, presente à partida. “Foi um jogo estudado dos iugoslavos contra o futebol marabalista do Brasil. Foi o melhor jogo que assisti.”

Última vitória no Maracanã
A derrota na final da Copa de 1950 foi a única do Brasil para o Uruguai no Maracanã. Depois da decisão, as duas seleções voltaram a se enfrentar outras sete vezes no estádio, com seis vitórias e um empate. Esse registrado no último confronto entre as duas seleções no estádio. Em junho de 2000, por 1 a 1, pelas eliminatórias do Mundial do Japão e da Coreia do Sul, em 2002, quando o Brasil conquistou o penta.

Diario presente
O Diario de Pernambuco esteve presente à final da Copa de 1950 com o jornalista Hélio Pinto, enviado especial para a cobertura. Foram duas páginas de texto com os relatos da dramática derrota brasileira, com a manchete "Campeões do mundo os uruguaios". Sessenta e quatro anos depois, em 2014, o Diario voltaria a estar presente em uma final de Copa no Maracanã, dessa vez entre Alemanha e Argentina (vencida pelos alemães por 1 a 0). Os jornalistas João de Andrade Neto e Cassio Zirpoli fizeram a cobertura.