Cruzeiro
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DA ARQUIBANCADA

Qual parte da história do Cruzeiro você escreveu?

A reconstrução do único gigante do futebol mineiro se inicia exatamente por quem ele representa: o povo

postado em 17/01/2020 09:48 / atualizado em 17/01/2020 09:56

(Foto: Lara Pereira / Superesportes)

Não foram poucas as vezes em que fui até uma casa lotérica, marquei os jogos e voltei para casa apertando os cartões de aposta por entre os dedos, com o sonho de ganhar o grande prêmio e doá-lo para o Cruzeiro. Ora para nunca vender o Careca e o Balu, ora para segurar o Boiadeiro das investidas de outros clubes após as duas Supercopas ou mesmo para repatriar em definitivo o maestro Douglas.
 
Sei que sou apenas um num mar de alucinados por seus clubes que já prometeram os milhões dos números sorteados para comprar ídolos ou mesmo saldar dívidas. Quantos de nós cruzeirenses não fizeram isso na última edição da Mega da Virada?
 
Não é de hoje esse sentimento de desprendimento do torcedor cruzeirense pelo seu clube. Vem de cem anos. Vem do Palestra. Dos imigrantes que ao criarem um modesto clube para os operários e famílias italianas, sem saberem, erguiam o único gigante do futebol mineiro.
 
Como é lindo poder torcer para um clube onde a sua história não foi construída por um mero mecenas, falcatruas ou privilégios políticos. Saber que nossas lutas, conquistas e tijolos, como os do velho estadinho JK, foram colocados pelas mãos de gente como Geraldo II, goleiro-ídolo em campo e pedreiro.
 
É de marejar os olhos pensar no fato da nossa história ter um presidente-torcedor chamado Felício Brandi. De quem o Cruzeiro recebeu doações de tempo e bens próprios para transformar a instituição no primeiro clube de Minas Gerais a romper o regionalismo.
 
Quantos foram os pais, mães e avós, que de tanto amor doado para além da capacidade do corpo suportar, tombaram sem vida, infartados nas arquibancadas do Mineirão em meio a um título ou um resultado negativo?
 
Os meninos das organizadas doando gritos em cânticos, músculos em bandeirões e bondes por estádios de todo o Brasil para mostrar ao mundo o amor incontestado pelas cinco estrelas. Muito deles com suas vidas arrancadas nesse caminho de entrega pelo time.
 
Gente humilde como o garçom Moacir e suas viagens de Mariana a Belo Horizonte para assistir aos jogos. Nas velhas bilheterias pintadas de branco e vermelho do Gigante da Pampulha, sempre comprava dois ingressos, e se perguntado sobre o porquê, dizia: “um para eu entrar no estádio e outro para ajudar o Cruzeiro”.
 
Mas não só do dinheiro e da vida vieram as doações, mas também da fé. Promessas pagas pelos títulos do time multicampeão. Gente como Saulo e Ricardo, percorrendo a pé os 740 quilômetros entre Brasília e Belo Horizonte para agradecer pela Tríplice Coroa de 2003.
 
Voltar em 22 de junho de 1997. Quando 132.834 cruzeirenses se juntaram num estádio de futebol, doando ao Gigante Celeste a mais linda página imortal de sua história escrita pela torcida: o eterno recorde de público do Mineirão.
 
Já com o rosto completamente encharcado de lágrimas provocadas por essas orgulhosas lembranças, me veio a derradeira. A da mulher exemplo máximo do significado da palavra “cruzeirense”. Salomé que doou sua existência terrena à essa paixão acalentada por nós todos. Assassinada pelo desgosto de ver a destruição provocada não pelos adversários incompetentes, mas pelos parasitas internos.
 
Escrevo, choro, arrepio, solto sorrisos, visito fotos antigas e desabafo tudo isso enquanto espero os poucos minutos faltantes para o Cruzeiro abrir o seu site, nos convidando ao novo programa de sócios torcedores. Tenho absoluta certeza do quanto passarei o dia pensando, que em meio à onda azul de “sócios da reconstrução”, estarão os italianos, os geraldos, os felícios, os hipertensos, os organizados, os garçons, os da arquibancada, as salomés e os comuns, como eu, aquele menino que fazia joguinhos da loteria, sonhando em doar para o Cruzeiro.
 
O dia 17 de janeiro de 2020 é a abertura de mais uma página heroica e imortal. Onde ela terminará, não sei, mas eu estarei nela, escrevendo ao menos uma letrinha dessa história.