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'Está no DNA': invasões históricas dos corintianos começaram 93 anos atrás

Em um intervalo de 11 meses, milhares de torcedores abarrotaram trens para Rio de Janeiro e Santos, entre 1930 e 1931

21/06/2023 06:00 / atualizado em 20/06/2023 19:40
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Vasco 2 x 3 Corinthians, em São Januário
foto: Arquivo Memorial Corinthians

Vasco 2 x 3 Corinthians, em São Januário

  
“Ser alucinado está no DNA: vendem tudo para viajar e ver o Corinthians”. A definição de Fernando Wanner, historiador do clube, pode não surpreender os torcedores alvinegros. O que poucos corintianos sabem, porém, é que as marcantes invasões de 1976 e 2000, no Maracanã, e de 2012, no Japão, não são as únicas em 113 anos. E nem de longe foram as primeiras.

A construção da identidade da Fiel, como a torcida se denomina, passa pelas décadas de 1920 e 1930. Um período em que viajar de avião ou até possuir um carro era raro privilégio. Mesmo a ideia da existência do que hoje é chamado de 'torcida organizada' ainda era muito inicial. 

Em dois episódios separados por 11 meses, milhares de corintianos abarrotaram comboios de trem da capital paulista para o Rio de Janeiro, onde oito mil assistiram ao time conquistar a taça que lhe rendeu o título de Campeão dos Campeões – hoje parte do hino do clube –, e mais 12 mil para Santos, na Vila Belmiro, palco do segundo tricampeonato estadual corintiano.

Histórias que, de quase centenárias, se perderam para várias gerações de torcedores, uma vez que quem as protagonizou há muito tempo não está mais aqui para contá-las. 
 
Para se ter uma ideia, os 12 mil torcedores que foram à Vila correspondiam a 1,3% da população paulistana naquele ano: 900 mil habitantes. 

A título de comparação, os cerca de 70 mil que viajaram ao Rio representavam 1,16% dos quase 6 milhões de paulistanos na década, segundo o IBGE. 
 

Fatos que, dados o modo de vida e os meios de transporte à época, são tão espantosos quanto as mais de 70 mil pessoas que estiveram no Rio, em 1976, ou os 40 mil responsáveis pelo chamado Mar Negro nas arquibancadas do Yokohama Stadium, há quase 11 anos. 

A fim de resgatar essas memórias, o Superesportes colheu relatos e registros em jornais sobre esses dois eventos que, quase 100 anos atrás, começaram a construir o imaginário do torcedor corintiano sobre si.

Vasco 2 x 3 Corinthians, Taça Apea, em São Januário


Oito mil pessoas dispostas a encarar uma viagem de trem por mais de dez horas até o Rio de Janeiro para ver um jogo de futebol. Fosse em 1976, 2000 ou até 2012, já seria um episódio digno de notícia, de uma boa história a ser lembrada. Mas isto ocorreu em 1930. 

– Eram viagens cansativas. O povo ia alucinado. Subiam em cima do trem, pendurados. uma loucura igual a hoje – relata Fernando Wanner. A única diferença, lembra ele, é que não havia um clima bélico, de ódio entre as torcidas: “Era algo folclórico, festivo.”

Assim foram os milhares de corintianos, em blocos, entre a sexta-feira e o sábado, para assistir ao jogo no domingo, 23 de fevereiro, às 16h. O fato de o confronto ocorrer em um final de semana ajudou, pontua o historiador, já que boa parte dos fiéis viajantes era formada por operários.
 

O duelo em questão se tratava da Taça Apea, a disputa entre os campeões paulista e carioca de 1929, organizada pelas federações dos dois estados. Ocorria, ali, uma semente do que seria o Torneio Rio-São Paulo, por sua vez um embrião dos campeonatos nacionais no Brasil. Daí a importância do duelo: de entre Corinthians x Vasco se conheceria o Campeão dos Campeões. 

O título seria definido em uma ‘melhor de três’, mas a terceira partida não foi necessária.

O primeiro jogo ocorreu no Parque São Jorge, no dia 16 de fevereiro, em São Paulo. Os vascaínos foram recebidos com muitas homenagens, em uma cerimônia grandiosa, conta Wanner. Filó, duas vezes, Gambinha e De Maria deram números à vitória dos paulistas por 4 a 2 em casa, que obrigava o Cruzmaltino a vencer na segunda partida, em São Januário.

Ciente da importância daquele confronto, o determinado Francisco Picciochi, conhecido como Tan-Tan, torcedor-símbolo da história corintiana, tratou de organizar uma excursão ao Rio de Janeiro. Na primeira reunião para definir os detalhes da viagem, cerca de mil associados disseram que iriam, conta o historiador. 

– A notícia rapidamente se espalhou e cada vez mais pessoas se interessaram. E foi assim: alguns grupos foram um dia antes, outros já na madrugada. Todos atravessando a ferrovia interestadual - relata. 
 
 

No Rio de Janeiro, o Corinthians e os torcedores foram recebidos com farra. Como não havia ainda um sentimento de rivalidade no futebol, era um evento festivo para ambas as torcidas, que conviviam entre si no estádio.

– As pessoas torciam, mas sem ambição. Naquela época confraternizavam, era algo mais folclórico. A torcida do Corinthians ficava com a do Vasco, e tinha torcedores do Flamengo e Fluminense ali também - comenta Wanner. 

Com a bola rolando, o Corinthians começou mal, sofreu dois gols dos donos da casa e perdia até a reta final da partida. No entanto, “baixou uma energia” no trio de ataque corintiano, que reagiu e decidiu o confronto nos últimos 18 minutos.  

– Filó, Gambinha e De Maria 'entraram' pra valer na partida: fizeram tabelas fantásticas e marcaram três gols em 15 minutos. Viraram o jogo e foi uma loucura, o Corinthians deu a volta olímpica em São Januário. Foi o primeiro título de caráter nacional do clube, na capital do país e o então maior estádio do país, que havia acabado de ser construído

A vitória corintiana foi registrada para todo o país, uma vez que os jornais do Rio de Janeiro, por serem federais, eram distribuídos nacionalmente.

– Foi um título que colocou o Corinthians em um patamar maior do que já era. Épico no âmbito esportivo e social… mudou pra sempre a história do corinthians - afirma Wanner.

Tão relevante para o clube foi aquela conquista que a alcunha de Campeão dos Campeões, em disputa contra o Vasco naquela Taça Apea, foi parar no hino corintiano quase duas décadas depois. 

– O Lauro D’ávila, autor do hino, se inspirou nesse título. Foram montando o hino no fim dos anos 1940, com várias versões, após o Torneio Rio-São Paulo de 1949, e o lançaram em 1951. Foi um processo: começou como marchinha, a torcida aderiu, e depois oficializado como hino do clube - explica o historiador alvinegro.

Santos 2 x 5 Corinthians, Paulistão de 1930, na Vila Belmiro

Santos 2 x 5 Corinthians, na Vila Belmiro
foto: Arquivo Memorial Corinthians

Santos 2 x 5 Corinthians, na Vila Belmiro



Menos de um ano depois do confronto em São Januário, a torcida corintiana protagonizou uma mobilização parecidíssima. Desta vez, para mais perto, mas em maior número: ao menos 12 mil encheram as composições de trens do centro paulistano rumo a Santos.

Responsável por fundar a primeira torcida organizada do clube anos mais tarde, Tan-Tan, também organizador da segunda invasão, relatou à revista Placar, em 1979, como foi o êxodo alvinegro para a Baixada Santista. 
 
– Guardadas as proporções, essa euforia de hoje é até brincadeira perto do que fizemos naquele domingo. Não existiam estradas boas, carro não era coisa para qualquer um, o dinheiro andava curto e ninguém fazia campanhas por rádio. Era tudo no peito e na raça, e lotamos oito composições do trem que saía da Estação da Luz e do Brás. Cada uma das composições levava dez vagões e não tinha espaço para mais ninguém - relatou.
 
Segundo Tan-Tan, fazia "um calor dos diabos" durante a viagem e também na partida, algo próximo a  40 graus. 
 
– As arquibancadas eram de madeira e estalavam como gravetos no fogo. Os bombeiros precisavam jogar muita água na torcida e na madeira, para que muita gente não morresse de insolação ou queimada em um grande incêndio. 

Além do número, a viagem para Santos foi ainda mais grandiosa porque os torcedores simultaneamente, comenta Fernando Wanner. Segundo ele, há a probabilidade de que tenha havido subnotificação devido à superlotação.

– Quem esteve lá relatou que o público era maior que o relatado nos jornais, talvez até 15 mil torcedores. Quase metade do público da Vila (cuja capacidade era de 25 mil pessoas) naquele jogo era do Corinthians - completa.

A bola rolou com um susto para os visitantes, que viram o Peixe abrir o placar aos dois minutos, com Feitiço, mas a reação não demorou. Gambinha e Filó viraram o jogo antes dos 30, e, na etapa final, De Maria, de novo Gambinha e Napoli deram números à goleada. Victor descontou para os santistas no fim: 5 a 2 para o Corinthians, pela segunda vez tricampeão paulista.

– O Corinthians era uma máquina, estava no auge, defendia espetacularmente e atacava fantasticamente. Nessa época o time transcendeu o futebol - diz Wanner.

Se a festa que chegou à Vila Belmiro antes do jogo já era extravagante, o título garantido na casa do rival a amplificou, com contornos de delírio.

– Com 5 a 2, invadimos o campo e a festa começou lá mesmo, terminando em São Paulo, no dia seguinte. Pegamos o trem de volta e muitos torcedores vieram em cima dos vagões, sem camisa e cantando. A Estação da Luz estava abarrotada de gente com rojões e bandeirolas. Acho que tinha mais gente do que tinha no aeroporto de Congonhas depois daquela decisão contra o Fluminense, no Rio de Janeiro, em 1976. A festa durou muitas horas - contou Tan-Tan à Placar. 

As comemorações foram tão intensas, relatou Tan-Tan, tomaram uma proporção trágica, pois alguns torcedores que voltaram sem camisa em cima dos comboios morreram de pneumonia: entre oito e dez torcedores, segundo os registros de Fernando Wanner. 

Celso Unzelte, jornalista que pesquisa a história corintiana, vê cenários muito parecidos entre a invasão em Santos, em 1931, e as registradas em 1976 e 2012, apesar da diferença entre os números de torcedores. 

– Os fatos são proporcionais às suas épocas. Ali, em 1931, só pelo fato de irem de trem, como não havia outro jeito, era uma loucura. As pessoas discutem sobre a importância dos estaduais hoje em dia, por exemplo. Mas em 1977, o título paulista foi como ser campeão do mundo, porque aquilo era o nosso mundo, pequenininho. Não tinha carro, celular, a perspectiva das pessoas era menor - analisa.

Unzelte vê nos corintianos um perfil de torcida com cultura de estádio, e que, por isso, se vê tão presente em jogos fora de casa. 

– É uma torcida de grandes recordes de público. Até o público recorde do Morumbi é do Corinthians. Contra a Ponte Preta, em 1977, 146 mil, com a maioria esmagadora de corintianos. Cheguei a ver um público contra o Juventus no Morumbi com 100 mil pessoas. 
São pessoas e gerações diferentes, mas a prática continua a mesma - afirma o jornalista.  

Linha do tempo das invasões

 
23 de fevereiro de 1930 - São Januário: Vasco 2 x 3 Corinthians - Taça Apea
 
4 de janeiro de 1931 - Vila Belmiro: Santos 2 x 5 Corinthians - Campeonato Paulista de 1930 (jogo do título)
 
1953 e 1954: ao longo dos Torneios Rio-São Paulo de 1953 e 1954, a torcida corintiana esteve nos estádios cariocas com forte presença – de dezenas de milhares em algumas partidas – contra Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo, no Maracanã. Na derrota por 1 a 0 contra o Vasco, em 1953, segundo Fernando Wanner, mais de 20 mil corintianos foram ao Maracanã. Na vitória por 2 a 1 sobre o Flamengo, em 1954, foram mais de 25 mil. Em ambas as edições o Corinthians ficou com o título.
 
5 de dezembro de 1976 - Maracanã: Fluminense 1 x 1 Corinthians (1x4, nos pênaltis), semifinal do Campeonato Brasileiro. Calcula-se mais de 70 mil corintianos no Maracanã, metade do público daquela partida. 
 
14 de janeiro de 2000 - Maracanã: Vasco 0 x 0 Corinthians (3x4, nos pênaltis) - final do Mundial de Clubes de 2000. Calcula-se que corintianos eram 30 mil, pouco menos da metade da capacidade naquela data. 
 
16 de dezembro de 2012 - Yokohama (Japão): Corinthians 1 x 0 Chelsea - final do Mundial de Clubes 2012. Calcula-se entre 30 e 40 mil torcedores corintianos no Yokohama Stadium, que teve público de 68 mil. 

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