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ENTREVISTA

Doido por futebol: Lisca conta sua história, polêmicas e faz reflexões sobre jogo 'conservador' no Brasil

Devorador de livros, inquieto e fã de Jürgen Klopp, técnico do América diz ser bom no que faz: 'Só doideira não te mantém 30 anos numa profissão'

postado em 12/07/2020 06:00 / atualizado em 12/07/2020 23:03

(Foto: João Zebral/América)


O jeitão enérgico e vibrante como conduz as equipes à beira de campo fazem de Lisca um personagem carismático no futebol brasileiro. Ao mesmo tempo em que se diverte com as brincadeiras nas redes sociais - com direito a perfil fake no Twitter seguido por mais de 19 mil pessoas -, o técnico do América mostra que a fama de “doido” é apenas um folclore e conta, em entrevista exclusiva ao Superesportes/Estado de Minas, da sua loucura - no sentido conotativo - pelo esporte. “Vocês me deram espaço para falar sobre o América, da minha carreira e de conceitos. Graças a Deus hoje todos conhecem meu trabalho. Levo (o apelido) numa boa, muito mais pelo entretenimento que pelo pejorativo”.

Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi, de 47 anos, não foi jogador profissional. Na adolescência, chegou a integrar as categorias de base do Internacional, clube do qual seu bisavô, Carlos de Lorenzi, e avô, Jorge de Lorenzi, atuaram como goleiros. O treinador garante que era um centroavante de bom cabeceio, posicionamento e leitura de jogo, embora não tivesse um chute tão qualificado. Oriundo de família financeiramente abastada, interessou-se pela função de técnico e ingressou na faculdade de educação física, aos 17 anos, em 1989. A partir dali, iniciou longa trajetória nas categorias de base de grandes clubes, como o próprio Inter, São Paulo, Grêmio e Fluminense, até rumar ao profissional.

O rótulo por vezes equivocado de uma personalidade agitada já esfriou interesses de clubes pelo trabalho de Lisca. Antes de defini-lo como substituto de Felipe Conceição, que foi para o Bragantino em janeiro, o presidente do América, Marcus Salum, buscou referências do treinador em conversas com dirigentes de Ceará e Paraná. Até agora, a escolha tem sido positiva, já que o time lidera o Mineiro de maneira invicta, com 21 pontos em nove rodadas, está na terceira fase da Copa do Brasil e mostra bom repertório técnico e tático. Na Série B, o objetivo é conquistar o acesso à elite do Campeonato Brasileiro.

No bate-papo com a reportagem, Lisca falou à vontade sobre vários assuntos. Ele contou como quebrou o paradigma de alcançar reconhecimento na profissão mesmo sem ter sido jogador de futebol profissional, revelou ser apreciador da literatura esportiva e declarou a grande admiração pelo técnico Jürgen Klopp, do Liverpool. Também explicou os episódios polêmicos na carreira - como os supostos problemas de relacionamento no Ceará e uma briga com um auxiliar técnico no Paraná - e reforçou o sonho de se tornar um treinador notoriamente de ponta no Brasil.

ENTREVISTA COM LISCA


Como começou no futebol? Antes de ser técnico, tentou jogar profissionalmente? Fez parte de categorias de base?

Joguei dois jogos pelos juniores do Inter, pois já era professor da escolinha e fazia faculdade. Levava times da minha faculdade para jogar contra juvenil, infantil e juniores. Eu ainda tinha idade de juniores, nós ganhamos o jogo e eu fiz dois gols. Era 1989, há um bom tempo, estou ficando velho. Fui convidado para jogar dois amistosos, mas acabei dispensado pelo Dorinho (técnico), acho que com razão, pois já estava trabalhando na base. Mas sempre joguei futebol paralelamente, sempre fui bom de bola.


Vim de uma família com uma condição financeira bem boa, e naquela época não podia pressionar para ser jogador de futebol, pois ainda tinha muito preconceito. Um jogador de uma classe mais estabelecida tinha dificuldades, as pessoas não direcionavam, havia muito preconceito. E o futebol mudou muito isso. Fui trabalhar com 17 anos nas escolinhas do Inter, uma série de classes sociais, caíram muitas cortinas para mim ali, muitos conceitos de vida mudaram.

Não fui um jogador profissional, e isso te dificulta muito mais na carreira de treinador. O jogador profissional de algum sucesso já tem alguns atalhos na carreira, algumas etapas que a gente tem que gramar desde o mirim e a escolinha. Em contrapartida, te dá um know-how muito grande de experiência por passar por todas as categorias e séries - D, C, B, A. Passa por vários níveis de clubes também. O caminho é longo, mas ao mesmo tempo te dá uma construção e um alicerce. 

Dou treino há 30 anos, em vários níveis. Então você experimenta coisas que funcionaram, que não funcionaram, agrega dali, agrega dali. Aqui no América tenho crescido muito e agregado muito com a comissão permanente, que é o Cauan (de Almeida, auxiliar técnico), o Gerson (Rocha, preparador físico), o Maickel (Padilha, analista de desempenho). Alguns modelos de treino, dinâmica de treino, tu vai crescendo todo ano.

Graças a Deus rompi essa barreira e me estabeleci como treinador, pois é difícil sair da base para treinador profissional, depois treinador de clube pequeno para clube médio e clube gigante. É um caminho bem difícil, mas bem prazeroso. A jornada, a construção,a experiência que tu viveu.

Eu fui jogador de seleção gaúcha de vôlei juvenil, com 17 anos, fui surfista, jogo tênis. Sou um esportista. Fiz educação física porque minha vida toda foi esporte. Fazia estágio nas escolinhas do Inter antes de ingressar na faculdade aos 17 anos. Fui, me apaixonei e desenvolvi minha carreira. O esporte é uma ferramenta educadora muito grande, não apenas profissional, mas pessoal, como cidadão, para desenvolver uma série de conceitos. Isso foi muito importante na minha vida, ter o esporte sempre presente. Uso isso na minha experiência como treinador.

Jogava em qual posição?

Eu era atacante, bom cabeceador, e com bom tempo de bola por causa do vôlei. Era um centroavante construtor, inteligente para jogar, fazia bastante gols, mas não tinha bom chute de média e longa distância. Mas de posicionamento e leitura de jogo era meu forte.

Você recebeu a alcunha de "Lisca Doido" por ser muito enérgico em suas comemorações, tendo, inclusive, ganhado música da torcida do Ceará. Há ainda muitas brincadeiras nas redes sociais com sua personalidade, existindo até mesmo um perfil de paródia no Twitter. Como lida com esse rótulo? 

É o fake mais original meu (perfil no Twitter). Eu acompanho e falo com ele de vez em quando. Ele traz informações que eu nem sabia de mim mesmo. Só uma vez eu reclamei que ele começou a falar que eu estava namorando não sei quem. Minha esposa ficou enlouquecida e me perguntou: ‘o que é isso?’. Eu respondi: ‘não sou eu, é o fake!’. Ela disse: ‘mas eu estou com ciúmes do fake’. Aí liguei para ele e disse: ‘meu, estamos nos complicando, vamos melhorar isso. Tu está me arrumando confusão aqui em casa’. Ele dava risada. É uma figura.


Isso ficou muito forte no Juventude. Depois foi para Náutico e Ceará. Na Série A de 2018 se divulgou muito. Tive espaço de vocês da imprensa, fui aos principais programas do país e pude falar sobre isso. Tenho uma relação muito forte não apenas com os torcedores do Ceará, mas de vários outros clubes. Aqui em Minas, quando eu ando, vários torcedores do Cruzeiro e do Atlético me param, cantam a música, dizem que torceram e vibraram junto. No América também.

Quando vim aqui em 2018, dei mais de cem autógrafos no Mineirão. Com a torcida do Flamengo também. Um cara responsável pelos bichinhos das propagandas da marca de leite me ligou para fazer o desenho Lisquinha Doido por causa das crianças. Tem muitas crianças que os pais me mandam vídeo delas dançando, cantando a música.

Tem esse lado legal e positivo do personagem. Agora tem o lado negativo, porque o doido é pejorativo. Muitas vezes as pessoas não me conhecem, principalmente no mercado, entre os clubes maiores. O Salum foi um que falou isso comigo. Ele me conhecia de longe, mas conversou com os presidentes do Ceará, do Paraná, com alguns jogadores. Ele me ligou, já vinha acompanhando a minha carreira, as minhas participações nos programas, onde pude falar sobre a minha história, falei de conteúdo.

Estou tentando desmistificar esse lado pejorativo, mas não me incomoda nem um pouco. Só me incomoda ficar o personagem e não falar de conteúdo, de trabalho, da carreira. Vocês me deram espaço para falar sobre o América, a minha carreira, conceito. Graças a Deus hoje todos conhecem meu trabalho, com 15 de base e 15 de profissional. Levo numa boa muito mais pelo entretenimento que pelo pejorativo.

Por trás do "Lisca Doido" há um profissional que se aprimora bastante no estudo do futebol. Percebemos isso por suas respostas analíticas nas entrevistas coletivas.  Gostaria que contasse um pouco da sua rotina. Quanto tempo passa avaliando modelos de jogo? Qual o padrão que mais te agrada? Em quais profissionais se inspira?

Comecei muito cedo a ler sobre futebol, em 1996 ou 1997. Está até aqui comigo o livro  (Futebol - 120 Jogos de Ataque e Defesa) de um autor alemão, Rolf Mayer. Ganhei esse livro em 1997 do meu pai já falando sobre as integração das valências em uma sessão de treinos. Hoje se fala de periodização tática, de fazer as partes física, técnica, tática e mental em uma sessão, colocando os conceitos, trabalhar com a bola desde o início. Eu já faço isso desde 1997.

Fala-se em intensidade, velocidade, execução, pressão… eu já li muito sobre isso. Meu pai me trazia muitos livros da Argentina. Nossa literatura brasileira agora está melhorando um pouco. Mas quando comecei, era difícil ter acesso.

Muitos paradigmas também, por não ter sido um jogador famoso, ter vindo da escola de educação física. Quebramos muitos paradigmas para entrar no mercado e graças a Deus puxamos uma fila.

Vivo futebol há 30 anos quase 24 horas por dia. Do meu hobby eu transformei na minha profissão. Considero-me privilegiado, pois estar nesse nicho do mercado, na Série A e na Série B, é um privilégio, é para poucos, uma minoria. Obviamente, foi com muito trabalho, construindo uma estrada enorme desde a base, desde o mirim, passando por vários estados. Essa construção é forte e te faz chegar ao mercado com alicerce.

E eu continuo lendo e estudando muito. Hoje em dia, com o advento da internet, você tem acesso a muito conteúdo. Não é receita de bolo, mas está ali para você ver como vai aplicar, encaixar no seu microciclo, distribuir as cargas e adaptar o modelo de jogo. O treinamento de futebol é muita adaptação, experimentação, aí tu vai experimentando, vendo o que funciona ou não.

Aqui no América faço uma gestão bem compartilhada com o Márcio (Hahn, auxiliar técnico), o Cauan (de Almeida, auxiliar técnico) e o Maickel (Padilha, analista de desempenho). Somos quatro cabeças pensantes das partes técnica e tática. Claro que o poder de decisão é do treinador, mas eu ouço muito com eles, que têm trazido muito conteúdo novo, é bem legal essa troca de informações com o pessoal do América.

Hoje em dia você tem muito acesso ao futebol europeu. É Campeonato Inglês, Alemão, Italiano (...). Estamos treinando só de manhã, então à tarde tenho usado para ver muitos jogos. O Liverpool o Felipe (Conceição) usou como base para fazer muitas situações no time do América. Eu já vim com um conceito de variação de sistema, variação tática, a gente vai olhando e estudando. Tenho observado muito o Klopp, muito o futebol inglês, até por essa inspiração que o Felipe teve aqui para conceber esse primeiro momento do trabalho.

Claro que tem suas diferenças e peculiaridades, mas a ideia de jogo, a pressão alta e a reação pós-perda são coisas que o futebol brasileiro está começando a crescer com a questão do Jesus, do Sampaoli, alguns treinadores da nova geração estão vindo com a compactação no campo ofensivo. A gente tem olhado muito a organização e a sincronia de movimento do Flamengo, a pressão no campo do adversário. O próprio Sampaoli com as saídas de bola no Santos, com o goleiro Éverson, vi bastante variação em busca do homem livre, do espaço entre linhas. A gente está tentando atualizar sempre, discutir conteúdo, ver vocês da imprensa, tem muita gente com bastante conteúdo também, que acrescenta muito. Basicamente é isso.

Continuo lendo livros. Gosto bastante dos livros do Phil Jackson. Agora saiu a série no Netflix, que basicamente é um resumo de dois livros dele, “Cestas Sagradas” e “Onze Anéis: a alma do sucesso”. Fala mais de gestão de grupo e compaixão. Acredito muito no sentimento também. Muitas pessoas veem o futebol como um esporte frio, puramente capitalista, por dinheiro. Eu não vejo assim. Se não tiver sentimento, compaixão entre os participantes, se não tiver a entrega, amor por aquilo que está fazendo e dedicação, a coisa não flui. Vou lendo, estudando e trabalhando nessa linha aí.

Por que os técnicos de outros países sul-americanos, como a Argentina, o Uruguai e a Colômbia, são mais bem avaliados na Europa do que os brasileiros?

É uma série de fatores. Vamos puxar na história do futebol. Por exemplo, meu bisavô foi treinador do Internacional em 1931. Em 1940, ele iniciou o rolo compressor, que foi um dos maiores times da história do Inter, junto com Orlando Cavedini, um treinador argentino. Isso aí já é corriqueiro na nossa vida.

Para quem acompanha a história do futebol, na Segunda Guerra Mundial, muitos treinadores da Cortina de Ferro se mandaram para os países da América do Sul. Teve vários famosos, o Dori Kürschner, do Flamengo, era húngaro. Ele pediu dez bolas e falou: ‘vamos começar a trabalhar passes, fundamentos’. Daí responderam: ‘Tu tá maluco? Aqui no Brasil, o jogador nasce pronto. O jogo só tem uma bola, por que tu quer trabalhar cruzamento, passe, fundamento?’. Mas depois o Flávio Costa, que ficou de auxiliar dele, aplicou tudo na Seleção Brasileira. Naquela época já tinha uma discussão muito grande. E o futebol brasileiro é um meio conservador, né?!


Já tivemos vários treinadores no Rio Grande do Sul, que é a minha formação. Jorge Fossatti, Juan Mujica, Pedro Rocha, todos esses passaram. Tem mais. Em São Paulo e aqui em Minas também. E eles nunca tiveram o sucesso de agora (com Jorge Jesus e Jorge Sampaoli). Essa diferença de concepção de jogo e treinamento ficou muito visível com a produção do Flamengo e do Santos.

Nós, treinadores brasileiros, sofremos com a cultura do país. Não temos a estabilidade que eles têm. Não conseguimos trazer sete ou oito integrantes da comissão técnica para trabalhar na nossa linha, muitas vezes temos de nos adaptar. E se perdemos dois ou três jogos, somos dispensados. Então, em várias ocasiões, os treinadores do Brasil não arriscam muito, não trazem inovações, fazem mais o trivial e primam pela parte defensiva. E os treinadores estrangeiros estão mostrando uma maneira diferente.

Tem uma nova geração (de brasileiros) que vem com essa concepção, sem essa cultura enraizada. É uma nova geração com visão diferente de treinamento. No nosso treinamento, a metodologia vem muito do atletismo, da escola militar, da escola de educação física mais antiga, e a gente vê muita coisa que se desenvolve. Temos uma nova geração que está trazendo esse conceito novo de treino. Vejo de maneira muito legal esse intercâmbio (com os estrangeiros). Não há razão alguma para o treinador brasileiro não ter essa vontade de trocar informação.

Nós perdemos muito espaço, e vem muito por causa da legislação. Nossa licença da CBF não nos autoriza treinar um time da Europa. Na China, agora estamos conseguindo por causa da licença PRO. Na Arábia Saudita voltamos a buscar o mercado que sempre foi dos brasileiros. Mas muito por culpa nossa, que não nos desenvolvemos.

Muitas vezes temos a dificuldade da língua, que o Felipão teve no Chelsea e o Luxa no Real Madrid. Há vários memes do portunhol dele, isso dificulta um pouco também. Os argentinos têm a facilidade da língua, e a licença da AFA libera para trabalhar no mundo inteiro. São três anos (de curso). Na CBF você faz um curso de 15 dias licença A e licença PRO. Só que a aceitação dela não é igual à da AFA. Agora que a CBF está brigando e tentando que os países sul-americanos aceitem.

Nós não temos treinadores no Uruguai, na Argentina, na Colômbia. Por que? Porque nem podemos trabalhar lá, a nossa licença não nos dá esse direito. Agora, com a licença PRO, todos terão de tirá-la para trabalhar até na Copa Libertadores. Estamos caminhando também para a nossa regulamentação profissional, porque nem isso havíamos definido no Brasil. É um fator que nos atrapalha um pouco.

Cabe a nós, brasileiros, desenvolver metodologias modernas que possam ser usadas no mundo todo. Precisamos evoluir nisso. E ter treinadores marcantes, como tivemos tempos atrás com Felipão nos anos 90 com Grêmio e Palmeiras, Luxemburgo com Palmeiras e Cruzeiro, Telê Santana com o São Paulo. E tem a questão também de relação com o mercado, né?! Somos clubes vendedores. O jogador vai bem num ano, e no outro ano não está mais no clube. Se você vai mal, não tem sequência no trabalho porque não obteve resultado. Se vai bem, não tem sequência porque seu produto chama atenção, e os jogadores saem.

Costumo dizer, me deixa cinco anos com Nilmar, Pato, Fábio Pinto, Diogo Rincón, Daniel Carvalho, Taison, Sidnei, Cleiton Xavier, todos os jogadores que revelamos no Inter. Mas todos eles saíram, não ficaram nem dois anos no clube. Como haverá um padrão e uma organização de equipe? Também sofremos muito com a dinâmica de um mercado vendedor.

É a característica do nosso país, que desde o período colonial eles vêm, pegam nossas riquezas e levam para lá. No futebol não é diferente. Hoje, cada dia mais cedo, os meninos estão indo para a Europa. Rodrygo, Vinicius Júnior, Reinier… há alguns que nem jogam no Brasil e estão em grandes clubes da Europa. Tudo isso tem que ser analisado. 

Acho que (o aprimoramento de técnicos do país) está sendo pensado, a CBF tem fomentado cursos também, estamos criando metodologias do futebol brasileiro, um linguajar e um glossário do futebol brasileiro. Acho que é o primeiro passo, e cabe à geração que está chegando buscar esse espaço no mercado mundial.

Considerando as suas referências de técnicos, o futebol praticado no Brasil pode, um dia, vir a se tornar tão dinâmico e intenso quanto da Europa?


A gente está buscando que o jogo seja mais intenso, mais rápido, com muito mais ações em alta velocidade. Hoje, os jogadores são controlados. Há aqueles que percorrem mais de 1 quilômetro acima de 24 km/h. Isso é padrão europeu. A evolução dos sistemas defensivos também, a evolução das metodologias de treinamento, a busca no treinamento a esse jogo intenso e com pressão o tempo todo, sem essa parte monótona.

O jogo (no Brasil) é muito mais lateral do que vertical, e esse tipo de jogo está perdendo espaço. As equipes que não evoluem para o jogo mais competitivo e intenso acabam perdendo e ficando para trás. Então, há uma tendência que a gente evolua.

Um dos meus maiores orgulhos em 2018, no Ceará, foi isso. O Ceará era o time mais rápido pós-roubadas de bola, chegava mais rápido e precisava de menos chances para fazer os gols. Então, é um padrão bem objetivo, bem dinâmico e rápido na transição tanto ofensiva quanto defensiva.

O jogo ficou muito em transições. Tem a transição da transição no futebol europeu. Tu rouba uma bola, começa a transitar, perde e os adversários já vêm, transitam e têm que retornar rápido. O jogo fica muito mais atrativo, muitas vezes tu está olhando o jogo aí daqui a pouco tu vai olhar o jogo do Brasileiro… e aí tem o calendário que é muito mais apertado, as distâncias também - porque o Brasil é praticamente uma Europa.

Tu viaja de um país para o outro para jogar, então muitas vezes você não chega na melhor condição, o calendário tem duas ou três vezes por semana com deslocamento e atrapalha. Tem a condição dos gramados também e já melhoramos muito, mas é inegável que quando tu olha os jogos da Europa e os gramados parecem um tapete, a bola rola com muito mais velocidade, o passe sai com precisão, as combinações são mais rápidas, é um jogo de combinação, de tabela e isso favorece muito, faz o jogo ficar mais veloz.

É uma série de aspectos, mas o futebol brasileiro tem buscado esse caminho, tem estudado em cima disso e tem que se padronizar. Senão nós vamos continuar chegando lá, batendo nos europeus e voltando para casa como aconteceu nos últimos anos, nos Mundiais de Clubes, que nós sofremos muito nesse combate. Muitas vezes nós não chegamos nem nas finais, como foi o caso do Inter (2010), do Atlético também (2013). É uma tendência mundial, e o Brasil não pode ficar para trás. Espero que a gente consiga fazer jogos bem mais atrativos neste ano.

Qual a sua ligação com o Internacional? Conte sobre seu avô e bisavô terem jogado pelo clube...


Meu bisavô começou no Inter em 1920. Ele foi tudo no clube. Ele foi o primeiro treinador em uma competição internacional do Inter em um jogo no Uruguai e o primeiro treinador em um jogo interestadual, que foi Inter x Botafogo, em 1931. 

Depois, meu bisavô foi treinador do rolo compressor junto do argentino Orlando Cavedini, já nos anos 1940. Meu avô era o goleiro reserva desse time, então eram pai e filho participando de 1940 a 1946, eles foram hexacampeões. Foi o primeiro hexacampeonato do Inter, então tem uma história.

Meu pai acabou desgarrando, eu costumo falar para ele e ele fica bravo comigo, mas casou com mulher rica então saiu do futebol, mas aí depois na minha geração retornou e o Internacional me abriu as portas aos 17 anos. Eu comecei nas escolinhas com 17 anos entre idas e vindas foram seis vezes, o pessoal do departamento pessoal dizia ‘já assina a rescisão e a admissão ou a admissão e a rescisão’.

Também como torcedor, meu avô me levava a muitos jogos, minha mãe me levava a muitos jogos e eu tenho uma gratidão muito grande pelo Inter. Entrei com 17 e saí com 37, me deu oportunidade de trabalhar com vários profissionais em todas as categorias, ser multicampeão na base, ser campeão no profissional também, ser campeão da América, do mundo, como auxiliar do Abel. Foi muito legal e é uma história muito grande. Até a minha esposa eu conheci dentro do Inter, só para ter uma ideia. Então, o Inter me deu minha família.

É um clube que eu tenho um respeito enorme e um carinho muito grande e, principalmente, uma gratidão. Tu começar a carreira em um gigante do futebol é muito importante para o profissional. O Inter me deu parâmetros altos, e eu sou grato por isso. Eu continuo acompanhando o clube, torço pelo clube, tu acaba torcendo pelos clubes que tu passa, os amigos que ficam. Depois que tu vira treinador, tu acaba pegando carinho por aqueles clubes que tu passa e tu cria amizade com os profissionais e acaba começando a torcer. Essa é minha relação com o Inter, é uma relação que vem de família e de gratidão.

Nos seus trabalhos por Ceará e Paraná houve relatos sobre brigas com jogadores e integrantes da comissão técnica, tendo, inclusive, reportagens de bastidores no site UOL. No América, ao menos até onde sabemos, não há nenhum problema de relacionamento. Houve alguma mudança de comportamento de sua parte ou considera que os episódios tiveram repercussão exagerada?

Graças a Deus sou um profissional que tenho uma característica: sempre volto aos clubes onde trabalhei. E quando você recebe um convite para voltar, é porque realmente tu deixou boas impressões, bons trabalhos e boas amizades. Foi assim no Ceará, no qual saiu essa reportagem do Pedro (Ivo Almeida, jornalista do UOL), que eu achei… é um tipo de jornalismo que existe, eu respeito, mas não considero muito. Ele não conhecia as pessoas e jogou no ar uma série de situações sem citar nomes. ‘Ah, me informei com uma pessoa, falaram isso, disseram aquilo’. Mas ninguém assume a crítica. Pode acontecer, mas não considero muito. 


Foi num momento importante meu, em que eu estava crescendo. Uma série de problemas que eu teria no Ceará, mas que toda a imprensa do Ceará nunca viu esse problema. Foi no dia da saída do Marcelo Rospide, que era meu auxiliar, a gente achou que era o momento de ele sair do clube. Tentaram criar uma série de problemas, mas não houve problema algum. Era uma questão corriqueira uma saída de uma pessoa que não está satisfeita com o seu cargo, foi isso que ele me colocou, que precisava buscar seu espaço.

Essa matéria surgiu no meio de todas essas circunstâncias, muito para trazer um lado negativo. Nesse dia não teve audiência com o Paraná, porque eu estava no curso da CBF, (a audiência) tinha sido adiada. Era uma matéria para me denegrir, sobre problemas que eu supostamente tive, que seria usada na audiência. Mas acabou não acontecendo.

Nunca falei com o Pedro pessoalmente. Depois ele me ligou e perguntou: ‘quer a resposta?’. Eu disse: ‘Pedro, você fez a matéria sem falar comigo, jogou um monte de coisa negativa, para depois eu ficar fomentando?’. Não achei legal, deixei acontecer, fiquei triste pela maneira como foi conduzida. Mas a gente tem que respeitar.

Trabalhei no Ceará em 2018 e fui convidado para voltar no ano passado. Se tivesse muitos problemas, dificilmente teria sido convidado de novo. No Paraná, tivemos a audiência este ano, do problema da suposta agressão. Quem me acusou não foi à audiência - os dois que eram testemunhas -, o Paraná me propôs um acordo e eu aceitei. Não houve demissão por justa causa. Quer dizer, não houve agressão. Se houvesse agressão, seria demitido por justa causa. Recebi todos os valores e agradeço ao presidente do Paraná.

As pessoas que fizeram a confusão não estão mais no Paraná. Qual foi minha atitude? Vou zerar minha conta com o Paraná, que até já fez o pagamento. Nós já acertamos, temos boa relação com o presidente, conversamos sobre uma possível volta, mas não aconteceu e eu vim para o América. Já resolvi essa situação.

O que ficou combinado na Justiça? Cláusula de confidencialidade. Não é para ficar falando muito nesse assunto, pois o Paraná me pagou tudo e propôs o acordo sem justa causa, assumindo que não houve agressão. Resolvi não dar sequência a esse assunto. O Matheus (Costa, auxiliar que teria brigado com Lisca) foi fazer a vida dele. O Rodrigo (Pastana, ex-executivo de futebol do Paraná) hoje é gerente do Coritiba. No ano passado me convidou para trabalhar no Coritiba, as pessoas não sabem muito disso. Mas o futebol é muito dinâmico, o que acontece em um ano, no outro já muda.

Trabalhei sete vezes no Inter, duas no Náutico, duas no Juventude, duas no Luverdense, duas no Ceará e recebi convites para voltar ao Paraná e ao Guarani. Acho que isso te responde qualquer pergunta sobre a relação com os clubes pelos quais passo. Ficou uma relação muito legal, e espero que no América também fique. Que um dia eu possa retornar ou no máximo a gente possa se reencontrar pelo Brasil e trocar uma ideia. No futebol, o que fica são as amizades. Obviamente, no dia a dia há desavenças e discussões, mas tudo profissionalmente, dentro do normal.

As pessoas se aproveitam do rótulo do doido para dizer: ‘olha lá, brigou, agrediu’. Cadê o boletim de ocorrência? Cadê o exame de corpo de delito? Cadê as imagens? ‘Ah, a pessoa falou e disse’. Se tem nome, tudo bem. Agora, ‘eu ouvi falar, me disseram, conversei com cinco pessoas que me disseram’, pode ter esse tipo de jornalismo, mas eu não levo em conta”.

Como e quando espera alcançar o status de técnico de ponta no Brasil?

Mostrando trabalho, crescendo no mercado e tendo competência quando jogar contra os clubes maiores, para que eles possam, um dia, pensar em abrir espaço para ti. Criando metodologias novas. Costumo falar que sou bom de treino. Tenho 30 anos como técnico, se não souber dar treino, tenho que me matar. É o mínimo que tenho de fazer. E vou aprendendo muito com todo mundo.


Aqui no América, aciono muito o Cauan, que comanda duas atividades por semana. Ele traz algumas colocações quando a gente planeja a semana, e eu deixo ele comandar os trabalhos. Isso tem sido muito legal, porque tu sai do micro e começa a olhar o macro. Vê detalhes que quando está comandando a atividade, concentrado na bola, naquela ação, não consegue ver uma situação mais ampla. Isso tem me ajudado muito com o Maickel, o Cauan, o Márcio. 

A gente está bem integrado, e eu tenho acionado bastante os auxiliares da casa no América. Estão muito bem, com muito conteúdo, e acrescentando muito ao nosso trabalho.

Acho que é uma questão de mercado, de tempo, de receber uma oportunidade e mostrar serviço, consistência. Só doideira não te mantém 30 anos numa profissão e você não vai trabalhar no Brasil inteiro. Não vai ter música, grito da torcida e dança se não tiver trabalho. É uma consequência do trabalho.

Vejo assim, como questão de oportunidade, de galgar espaço. Estou com 47 anos, uma idade de maturidade para treinador, buscando as conquistas, o espaço. Muitos treinadores cresceram depois dos 48, 50.

O mercado ainda é um pouco conservador, e alguns treinadores, até pela idade, vão ter que dar espaço, como Felipão - tem mais de 70 anos -, Luxemburgo, Abel, o (Antônio) Lopes está coordenando, o Paulo Autuori está treinando mas também vai para o lado da coordenação, o Muricy virou comentarista e agora quer voltar como coordenador também.

Na Série B tem muitos treinadores da nova geração. Vai ser interessante, e eu espero galgar espaço. Estou feliz no América, mas todo mundo quer crescer cada vez mais, e eu não fujo disso.

A entrevista

Lisca, técnico do América, concedeu entrevista exclusiva ao Superesportes e ao Estado de Minas. Na conversa, ele falou sobre o trabalho à frente do Coelho em 2020, a disputa da Série B, a reta final do Campeonato Mineiro, sua carreira e o futebol brasileiro.


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